quarta-feira, 9 de março de 2022

Uma carta na guerra

"Vou-me embora com estes homens que também se vão. Mal os conheço, mas sei porque é que eles estão comigo.

Está na hora de partir. 

Os motores estão mais que prontos.

O destino é a carnificina mais que certa. Vamos fazer figura de utopia da resistência. Ali estaremos a ouvir o zumbido da morte e o ribombar estridente da terraplanagem de uma história. Depois será a paz. Se me encontrares morto, que seja por terem-me entregue a ti a aos meus restos sobrantes e que as tuas mãos me recebam. Afortunado serei se não ficar na decomposição que alimenta os cães e as terras do campo de batalha.

Agora vou.

Não deixes cair nenhuma lágrima. Cada uma que cair será a pior das bombas que me poderão atingir. Quero ver esses olhos mentirosos de felicidade, de esperança e de amor. Mente-me por uma última vez.

Os tanques de guerra já deitam fumo e os camiões repletos de homens amontoados para serem descarregados na fornalha acenderam as luzes de nevoeiro.

Sim levo tudo, não me esqueci de nada. Também levo um cantil de água mais que suja mas sempre servirá para limpar a cara no momento imediatamente antes de ser abatido ou desmembrado por uma filha da puta de uma bomba cientificamente preparada para não falhar-me como alvo. 

Dá-me por favor o teu lenço sujo. Quero levar alguma coisa física que seja tua para compensar a imagem que guardo do teu sorriso e que pelo caminho a possa perder... 

Sim, eu sei que prometi que te defendia, não deixei de ser uma mentira, mas se não for morrer para longe também não poderei ficar contigo. Teria de morrer aqui. 

Guarda por favor a fotografia que me deste, serias a minha santa padroeira do caminho das lamas e da poeira que teima não descer à terra. Quando for abatido por uma bala que perfurará a porcaria deste capacete de brincar à guerra dos homens maus, não quero que me vasculhem os bolsos e encontrem a representação da beleza e da minha felicidade. Não lhes quero dar esse gozo pérfido. 

Bem está na hora de ir, até já e nunca mais nos voltaremos a ver. Tem cuidado contigo, toma conta da nossa casa que daqui a pouco tempo será dizimada. Pelo menos vê se a porta fica bem fechada antes do sótão do último andar cair no chão com tudo o que o segurava. Sim, também cairá aquele último andar onde não raras vezes vimos o pôr do sol e que sempre dizias, pronto apagou-se. 

Gritou. 

Eles estão a mais ou menos a 250 metros de nós. Escondido debaixo do camião, tinha na mão esquerda esta carta amarrotada, suja e lida pela última vez. No momento da despedida, na semana passada ou há menos dias porque o tempo se confunde e impede de ser contado, não teve coragem de entregar um papel de despedida escrito na pressa de um bico de lápis mal aparado. 

Guardou a carta, a fotografia e o lenço. O lenço fez de torniquete na zona da rótula estilhaçada. Amparava as dores a cada vez que mexia ou tentava segurar-se. 

Explodiram o camião e as outras tralhas com tudo o que mal mexia. 

Muitos deles, eram cinco já não mexiam e não sentiram o calor da deflagração, outros dois dois mal tempo tiveram para sentir mas viraram a cara. 

Está na hora de partir..."

Dagoberto de Andrade (05.03.22)

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