Poeta e trovador, sabe-se que habitou a Península Esgríncia por volta dos anos 1848 a 1852. Deixou um incalculável legado de textos e melodias, outrora, invocados como testemunha de feitos epopeicos e heróicos dos povos locais.
quarta-feira, 30 de março de 2022
ironia da vida
terça-feira, 29 de março de 2022
do tempo, 10 de abril de 2011
... do Tempo....
- Tem horas? perguntou.
- Tenho sim, respondeu o outro. Tenho horas marcadas no meu relógio, tenho tempo passado na minha vida, tenho o passar destes momentos no presente que aqui estou à sua frente, tenho futuro sem saber qual e quão frutuoso será.
- E as horas, que horas são agora?
- Não sei que horas são agora. Das que quero ou que você quer, ou daquelas que nós precisamos, mesmo que em ultima análise sejam diferentes....
- Deixe-se de coisas, só lhe perguntei as horas...
- Mas eu só lhe respondi dando-lhe todas as horas e todas as respostas... São 4 horas e 18 minutos... que é que o senhor ganhou com isso? Está no tempo certo? Está adiantado para algo que não deverá fazer? Está a perder tempo? Está atrasado para algo que já deveria ter sido feito....
- Pois não sei... eu só queria saber das horas... mas agora... não sei... quem é você?
- Sou o dono do meu tempo.
- Ninguém consegue ser dono do tempo... só se for do que passou... mas do que vem... virá.
- Engana-se. Aqui estou sentado... enquanto estou aqui sentado o tempo não passa...
- Pois um velho sentado num banco de um jardim, curvado sobre uma bengala...
- Sim um velho... mas já cá cheguei... você aqui não chegou...
- Eu estou aqui...
- Mas daqui não sairá... para si o tempo parou... serão sempre 4 horas e 18 minutos... já eram, são e sempre continuarão a ser...
- Deixe-se de coisas, fantasias e tramas... até depois... até nunca mais... que raio de velho...
- Porque será que o seu pensamento pretende sair mas o seu corpo não continua....
- Não sei... não sei responder...
- Pois não... mal sabe onde está... o poder de decidir já não está nas suas mãos... aqui o tempo não corre... e falhando uma das dimensões as restantes deixam de encaixar...
- As restantes...
- Sim o espaço e o seu espírito... sem o tempo o espaço não se move e perde dimensão, depois o seu eu, confuso e inerte deixa de fazer sentido... com alguma sorte ficará sentado numa cadeira de um jardim....
- Fazendo o quê?
- Já tem perguntas? Aqui o «raio do velho» como você disse...
- Mil perdões... não sei porque o disse...
- Claro que não. Nós nunca sabemos nada daquilo que não nos interessa.
- Está aqui sentado há quanto tempo? Há quantas horas está aí parado?
- Sei lá... já lhe perdi a conta...
- Almoçou ao menos?
- Aqui não se almoça. Quando aqui outro me deixarou, eu era pouco mais velho de aparência que você...
- Impossível....
- Traspostos os portões... esqueça tudo o que sabia... a outra vida... tudo...
- Não diga coisas, eu vou a caminho de...
- De nada. Não sabe para onde vai. E mesmo que soubesse aqui isso não existe. Aqui somos simplesmente almas que vagueiam....
luz
segunda-feira, 28 de março de 2022
a consciência
me observo
do contrário
até onde poderei ir
em paz
por terminar
ciclo da vida
do corpo
esse beijo reclamado
Requiem da desesperança
absinto da vida (a terminar)
da vergonha (a terminar)
dos machos latinos
a estaca da ideia
e se não te conhecer
tempestade
tardiamente
quarta-feira, 23 de março de 2022
quinta-feira, 17 de março de 2022
dos despojos, (17-03-2020)
dos despojos,
a solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias
Não me lembro de ter vivido em paz.
Os momentos passados em silêncio eram de uma terrível sensação de ansiedade e medo. O silêncio é prenúncio de terror. A espera. A angústia da espera.
No imediato momento em que começa a soprar o zumbido é sinal que nas imediações vão cair engenhos da guerra.
Nada mais resta intacto que mereça ser destruído. Mas a guerra parece que é assim mesmo, tem começo sem fim.
Desde que sinto a "memória" viva e permanente na cabeça, ela vem sempre acompanhada de momentos de fuga. A memória ao contrário do que alguém possa querer explicar, não são pedaços do passado revistos e projectados pelas traseiras dos nossos olhos para dentro da cabeça, tal qual uma caixa de luz emite as sombras em movimento.
A memória é uma urgência. A memória são cheiros reais dos corpos estropiados exalando odores putrefactos. É molhada pelas poças de lama que espirram quando corres e corres sem noção de teres perdido as forças para que consigas correr ainda mais depressa do que a velocidade dos estilhaços que nos vão acertando.
Olha, aquele foi dos últimos a ter fugido. Correram uns quantos e ele estava para trás. Correu porque foi atrás dos outros em vez de ter tentado salvar a sua vida.
Foi por impulso e acção em vez de ir na urgência da vida. É totalmente diferente fugir para viver ou fugir atrás de alguém para se salvar.
Viver é correr mais e mesmo assim tão pouco; fugir de lado nenhum para qualquer sítio onde não possa ser alcançado por uma bomba ou seus estilhaços; saltar por cima da destruição e enganar as miras apontadas das munições dos ocupantes.
Ainda há tempos atrás alguém vinha a meu lado, corríamos em ziguezague tricotando caminhos. Ele chorava de gritos. Gritava a chorar. Pobre coitado. Não o consegui mandar calar porque me iria distrair e perder o sentido do som das balas.
Elas vinham todas de cima, lá do cimo dos terraços dos arranha-céus. Apontadas primeiro à cabeça e só depois se necessário às pernas para levantar a mira novamente à cabeça para terminar o serviço.
Ele corria três passos atrás dos meus, pisava as minhas marcas. Corria atrás de mim. A bala que era para me ter acertado acima dos olhos, raspou o escalpe e foi-lhe apanhar o peito. Calculo que lhe trespassou o externo e nem os pulmões amorteceram com a sua massa mole a força da bala.
Deixei de ouvir o choro.
Não me lembrei de olhar para trás.
Segui. Por raios. Insensibilidade. Não parei para prestar auxílio. Nem sabia que isso existia.
Como posso ter memória tão presente de algo que não vi e que imagino ser real. Parece que o vi cair no chão mudo, calado e sem que lhe tivesse doído a queda. Quando aterrou já ia morto.
Nunca houve paz, sentimento intraduzível por quem nunca a viveu e que sem memória dela, não a pode recordar.
O que é a paz.
A paz poderia ser simplesmente a falta de munições que os atacantes têm à sua mercê e parece ininterruptamente não lhes faltar. Devem ter uma grande fábrica com que construíram as minhas memórias.
Consegui fugir de ser um alvo em movimento. A maior parte do tempo simulava que estava morto. A restante parte passei-a a correr das balas à procura de refúgio.
Agora estou perdido no meio de uma floresta.
Não sei viver. Falta-me fugir das balas. Era a única coisas que os sobreviventes eram bons a fazer até o deixarem fatalmente de ser.
E agora.
Não sei o que é um dilema. Dilema é optar e decidir. Nunca tive hipótese de optar não correr das balas assassinas. Nunca pensei em decidir se o caminho era o correcto. Era sempre aquele trajecto não escolhido o único possível, caso contrário agora era húmus de mim impregnado nas ruínas da terra, local onde o atacante pudesse ter tido melhor pontaria que a minha escolha tomada.
Gostava de voltar a espreitar aquele local de memórias.
Não faz sentido querer lá voltar.
Se é isto a que chamam memória, então estaremos todos tramados. Nunca aprenderemos nada com a memória.
A memória do sofrimento pouco nos ensinará a sobreviver. Tornar-nos-á reféns de escolhas e subjectividades demasiado humanas. Faz-nos perder tempo e a morte é agiota do tempo.
O silêncio deste verde interminável que me esquece as sombras dos arranha-céus. Camuflados pela escuridão da massa de betão que se oponham à luz do sol, percorri a vida até então encostado o mais possível às paredes. Ninguém ensinou que as balas tracejantes necessitam de um angulo mais aberto para que possam ser bem sucedidas. Mal aventurados aqueles que fugiam dos estilhaços das montras e das línguas de vidros a explodir para o meio dos caminhos abertos. Quais técnicas avançadas de matança, armadilhas lançadas com sabor a morte.
Menos um no contador mas mesmo assim não acelera o terminar da guerra. Se uma morte valesse de alguma coisa, esse seria o momento do agressor afrouxar os desejos de saborear os odores das carnes caídas ainda frescas no chão.
Esta sensação perturbante do silêncio.
Sentado no rebordo de uma árvore, seguramente seriam necessários uns vinte ou trinta fugidos para contornar aquela circunferência de madeira que resistiu ao passar dos tempos.
Um corpo presente.
Um corpo gasto, esfomeado, sujo, cicatrizado.
A solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias.
Agonizando.
Para se experimentar a solidão é necessário em algum momento ter-se estado acompanhado e dependente de alguém que nos tome as rédeas da condução das decisões. Aquela era outra solidão. Mergulhado numa imensidão nocturna da anarquia da floresta que sobrevive crescendo numa luta vertical em direcção à primeira fímbria da luz solar, paira uma densa névoa respirada pelas plantas exalando odores de vegetação apodrecida e consumida pelas terras lodosas; tornava o espectro fantasmagórico.
O ar tornava-se cada vez mais ramificado e inebriante.
Sensação de nuvens carregadas de chuva que podiam jorrar bátegas de água mas que inverteram-se. Pairam pelo chão e com as mãos consegue-se riscar traços abertos que permitem ver o chão.
E se subisse esta árvore, urgência do pensamento plasmado. É possível ver-se o pensamento? Subir a árvore para quê? Onde termina a floresta, o que haverá além? Estarei a caminhar a direito para longe do meu destino.
Sinto o desconforto do medo. Os barulhos, estava tão habituado ao terror dos gritos que interrompiam ao silêncio. Agora não oiço nada. Sou apanhado distraído com os sons da floresta. Rugidos do som do vento que circundam as árvores e serpenteiam por elas acima levando pedaços desta névoa térrea em espiral até me desaparecerem do meu alcance.
Lá em cima deve estar sol. Parece que vejo um certo piscar de luz.
Não tenho artes, forças ou forma de subir estes gigantes.
Olho para as nervuras dos troncos e eles dançam. Oscilam numa espécie de bailado.
Corro sem saber onde colocar os pés. Tropeço. Levanto-me e agarro no primeiro pau que consigo apanhar. Que seres são estes? Fujo da guerra para um insano mundo de demónios.
Sinto o restolhar do chão a aproximar-se. Passos estranhos que me confundem a orientação. Escondo-me encostado a uma árvore e semicerro os olhos para perceber o som que tento perceber mais próximo, a névoa que se possa demarcar e abrir passagem para o que esteja a aparecer. Levanto todos os meus sentidos e principalmente apuro o ouvido. Não oiço nada. Estará parado a espera que me mexa? Tenho que me manter imóvel. Sou demasiado pesado para esta espera. As pernas tendem a fraquejar.
Pesado não é o corpo assente naquele lodaçal, o que pesa é o medo.
Desço a mão esquerda e encosto-a ao corpo. Relaxo.
No bolso sinto a presença de um dos dois amuletos que carrego há tanto tempo, imenso que não consigo lembrar. Talvez numa das últimas mudas de roupa que consegui trocar com um dos corpos pouco ensanguentados com que me deparei num momento de pausa dos ataques. Não me lembro ao certo.
Aperto. Sinto a ponta rasa da munição que apanhei um dia do chão. Aperto com força à medida que atento ao movimentar da neblina que paira acima dos tornozelos. Volta aquele som. O que ali estiver estará próximo.
Faço força com os olhos para ouvir melhor. Contradições dos sentidos. O ser humano não foi preparado para estar condicionado e privado das suas defesas elementares. O som de uma marcha que não avança. Torço a cabeça para dar amplitude ao melhor ouvido. Qualquer coisa estará ali.
Começo a pensar ou duvidar se oiço sons ou se a minha cabeça simplesmente imagina a existência de qualquer coisa que ganha forma e musculatura de fantasia.
Fraquejo.
Se estivesse fora de mim e me olhasse atentamente teria a aparência de um esquálido ser.
Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.
Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradíssimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo ter-me-ia levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial da sobrevivência.
Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido.
Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.
Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.
Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.
Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamacento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perpassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário.
Atravesso o espaço que não conheço por um carreiro de pedras envoltas em musgo que exala um odor, quase se permite morder no ar, percorro caminho que se apresenta virgem de passos perdidos desde um passado tão distante que esta selva desenfreada persistiu esconder.
quarta-feira, 9 de março de 2022
Então e o mundo corre?
"Então e o mundo corre?
Não, está parado...
E a tua vida, como estás?
Morri.
Morreste, mas valeu a pena?
Era a única coisa que se importou comigo, já algum tempo que me aguardava e prometia amor eterno 🥀"
Votos renovados (27.02.22)
"No dia em que me descobrirem morto
Quero um enterro negro e preto
Quero silêncio
Quero ouvir-me
Quero ouvir a terra e as pedras a baterem nas tábuas
Quando as cordas baixarem o caixão será o último som retirado da luz do dia
Silêncio, os mortos não ouvem."
... que regressem (28.02.22)
"Segue, seguindo aquele caminho
Traçado, subido e transpirado
Desce a vala de donde as chuvas correm em carreiro
Lá em baixo, ao fundo onde tudo desaparece atrás da correria dos homens,
Existem mulheres mães e mulheres avós já viúvas que aguardam estes que aqui regressam
Mesmo que mortos estropiados, mas que regressem"
Uma carta na guerra
"Vou-me embora com estes homens que também se vão. Mal os conheço, mas sei porque é que eles estão comigo.
Está na hora de partir.
Os motores estão mais que prontos.
O destino é a carnificina mais que certa. Vamos fazer figura de utopia da resistência. Ali estaremos a ouvir o zumbido da morte e o ribombar estridente da terraplanagem de uma história. Depois será a paz. Se me encontrares morto, que seja por terem-me entregue a ti a aos meus restos sobrantes e que as tuas mãos me recebam. Afortunado serei se não ficar na decomposição que alimenta os cães e as terras do campo de batalha.
Agora vou.
Não deixes cair nenhuma lágrima. Cada uma que cair será a pior das bombas que me poderão atingir. Quero ver esses olhos mentirosos de felicidade, de esperança e de amor. Mente-me por uma última vez.
Os tanques de guerra já deitam fumo e os camiões repletos de homens amontoados para serem descarregados na fornalha acenderam as luzes de nevoeiro.
Sim levo tudo, não me esqueci de nada. Também levo um cantil de água mais que suja mas sempre servirá para limpar a cara no momento imediatamente antes de ser abatido ou desmembrado por uma filha da puta de uma bomba cientificamente preparada para não falhar-me como alvo.
Dá-me por favor o teu lenço sujo. Quero levar alguma coisa física que seja tua para compensar a imagem que guardo do teu sorriso e que pelo caminho a possa perder...
Sim, eu sei que prometi que te defendia, não deixei de ser uma mentira, mas se não for morrer para longe também não poderei ficar contigo. Teria de morrer aqui.
Guarda por favor a fotografia que me deste, serias a minha santa padroeira do caminho das lamas e da poeira que teima não descer à terra. Quando for abatido por uma bala que perfurará a porcaria deste capacete de brincar à guerra dos homens maus, não quero que me vasculhem os bolsos e encontrem a representação da beleza e da minha felicidade. Não lhes quero dar esse gozo pérfido.
Bem está na hora de ir, até já e nunca mais nos voltaremos a ver. Tem cuidado contigo, toma conta da nossa casa que daqui a pouco tempo será dizimada. Pelo menos vê se a porta fica bem fechada antes do sótão do último andar cair no chão com tudo o que o segurava. Sim, também cairá aquele último andar onde não raras vezes vimos o pôr do sol e que sempre dizias, pronto apagou-se.
Gritou.
Eles estão a mais ou menos a 250 metros de nós. Escondido debaixo do camião, tinha na mão esquerda esta carta amarrotada, suja e lida pela última vez. No momento da despedida, na semana passada ou há menos dias porque o tempo se confunde e impede de ser contado, não teve coragem de entregar um papel de despedida escrito na pressa de um bico de lápis mal aparado.
Guardou a carta, a fotografia e o lenço. O lenço fez de torniquete na zona da rótula estilhaçada. Amparava as dores a cada vez que mexia ou tentava segurar-se.
Explodiram o camião e as outras tralhas com tudo o que mal mexia.
Muitos deles, eram cinco já não mexiam e não sentiram o calor da deflagração, outros dois dois mal tempo tiveram para sentir mas viraram a cara.
Está na hora de partir..."
Dagoberto de Andrade (05.03.22)
Do arrependimento (07.03.22)
"Um dia estava sozinho como sempre estou, do outro lado e à frente do espelho estava o meu único amigo.
Discutimos e dissemos coisas desagradáveis, muito agressivas.
Foi um terrível ajuste de contas.
No fim virei costas e apaguei a luz.
Passados uns dias senti o amargo do arrependimento.
Voltei ao lugar onde está o espelho.
Acendi a luz e esperei.
Do outro lado não estava ninguém.
O meu reflexo não estava arrependido."
... em queda livre (09.03.22)
"... em queda livre
Atirado para um poço
Batendo nas paredes de pedras toscamente assentadas para suster as terras,
Em queda livre gritada,
Num sopro agudo que afoga os pulmões,
A vertigem que esfola os pés que resvalam e torcem os joelhos que te dão balanço para as pancadas nas têmporas.
E choras,
E choras, porque não consegues gritar,
Os pés que não alcançam o fundo.
A vertigem da sucção,
Ainda não sabes mas só agora começaste a queda livre.
De cada vez que tentas olhar para baixo,
De cada vez que o teu estômago faz força para conseguires abrir os braços levas pancadas de ricochete,
Meu Deus, pai, ajuda-me que isto não pára,
Minha mãe, onde estás agora para me amparar,
Alguém que me segure a gola.
E está escuro.
Da outra vez tentaram afogar-te.
De olhos vendados e dobrado em cima da cadeira, percebias a centelha luz da lâmpada lá em cima tremendo através dos filamentos em brasa.
Mal sentado em cima dos punhos atados atrás das costas, conheceste como se afoga um homem com meio balde de água suja entornada sobre a boca que não te deixaram fechar.
Em queda livre que o peso do teu morto corpo acelera nas pancadas que absorves em cada saliência que acertas...
A paz finalmente.
Aquela luz ali em baixo.
Esse sorriso esganado.
O estômago que deixa de ser obrigado a comprimir a tensão dos músculos restantes.
Desmaiado no momento certo que alivia todas as dores passadas e suspende a queda,
Não sabes mas foste levemente recebido no fim do buraco sem fim.
Agora aguardo que acordes.
Lembras-te de mim.
Acorda meu amigo, não me deixes aqui.
Esperem,
Está aqui esta flor,
Um malmequer igual aos com que brincámos a arrancar as pétalas brancas naqueles tempos dos joelhos e cotovelos esfolados.
Faz tu agora, pode ser que tenhas sorte e calhe sim.
Podem tapar.
As primeiras pazadas de terra que sujam e tapam a madeira envernizada são tímidas.
Denota-se o cuidado com que o coveiro tenta não atirar nem muita nem muito de cada vez.
Estás aí.
Acorda agora senão termina.
O coveiro sem olhar em redor dobra-se sobre o buraco tapado.
Bate sete vezes,
Sete vezes sete basta,
Setenta vez sete era a conta que Jesus pedia bem mais por um perdão de um irmão.
Perdoa-me, e agora não sei mais.
Podias ter avisado como era aqui em cima sozinho."
Dagoberto de Andrade, 09.03.22