quarta-feira, 30 de março de 2022

ironia da vida

Ironia da vida
Enquanto a Clotilde aproveitou para ir ao cabeleireiro e apresentar-se no almoço todo chique com as amigas, o Adérito foi à loja de ferragens e comprou um rolo de corda para se enforcar, atirando-se do quinto andar virado para a avenida principal.
Barricou-se por dentro de casa e matou-se do lado de fora da janela.
Já em pleno almoço, no meio de felizes e estridentes gargalhadas, o restaurante foi baixando o som e desviando atenção para a televisão que até ali mal marcava a presença.
A câmara do repórter debaixo de um som solene e monocórdico, apontava uma enorme escada dos bombeiros que a custo e de forma periclitante se abeirava do corpo já frio da vida.
A boa da Clotilde, levantou-se e em passos curtos muito nervosos, se aproximou da televisão pendurada no alto da parede. Reconheceu o prédio, a varanda, a sua roupa estendida que aparecia na imagem... e também o corpo que era descido da corda pelos dois bombeiros.
Era uma corda nova de nó fácil mas eficaz.
Balbuciou, porquê... Claro, porquê...
Entretanto, do silêncio irrompe o som do seu telemóvel. Aquele toque divertido que apelava a danças latinas das discotecas da moda. 
Era a dona do cabeleireiro onde a Clotilde tinha estado duas horas antes a dizer que tinha lá ficado um colar esquecido.
Ironia da vida.

terça-feira, 29 de março de 2022

do tempo, 10 de abril de 2011

 ... do Tempo....

- Tem horas? perguntou.

- Tenho sim, respondeu o outro. Tenho horas marcadas no meu relógio, tenho tempo passado na minha vida, tenho o passar destes momentos no presente que aqui estou à sua frente, tenho futuro sem saber qual e quão frutuoso será.

- E as horas, que horas são agora?

- Não sei que horas são agora. Das que quero ou que você quer, ou daquelas que nós precisamos, mesmo que em ultima análise sejam diferentes....

- Deixe-se de coisas, só lhe perguntei as horas...

- Mas eu só lhe respondi dando-lhe todas as horas e todas as respostas... São 4 horas e 18 minutos... que é que o senhor ganhou com isso? Está no tempo certo? Está adiantado para algo que não deverá fazer? Está a perder tempo? Está atrasado para algo que já deveria ter sido feito....

- Pois não sei... eu só queria saber das horas... mas agora... não sei... quem é você?

- Sou o dono do meu tempo.

- Ninguém consegue ser dono do tempo... só se for do que passou... mas do que vem... virá.

- Engana-se. Aqui estou sentado... enquanto estou aqui sentado o tempo não passa...

- Pois um velho sentado num banco de um jardim, curvado sobre uma bengala...

- Sim um velho... mas já cá cheguei... você aqui não chegou...

- Eu estou aqui...

- Mas daqui não sairá... para si o tempo parou... serão sempre 4 horas e 18 minutos... já eram, são e sempre continuarão a ser...

- Deixe-se de coisas, fantasias e tramas... até depois... até nunca mais... que raio de velho...

- Porque será que o seu pensamento pretende sair mas o seu corpo não continua....

- Não sei... não sei responder...

- Pois não... mal sabe onde está... o poder de decidir já não está nas suas mãos... aqui o tempo não corre... e falhando uma das dimensões as restantes deixam de encaixar...

- As restantes...

- Sim o espaço e o seu espírito... sem o tempo o espaço não se move e perde dimensão, depois o seu eu, confuso e inerte deixa de fazer sentido... com alguma sorte ficará sentado numa cadeira de um jardim....

- Fazendo o quê?

- Já tem perguntas? Aqui o «raio do velho» como você disse...

- Mil perdões... não sei porque o disse...

- Claro que não. Nós nunca sabemos nada daquilo que não nos interessa.

- Está aqui sentado há quanto tempo? Há quantas horas está aí parado?

- Sei lá... já lhe perdi a conta...

- Almoçou ao menos?

- Aqui não se almoça. Quando aqui outro me deixarou, eu era pouco mais velho de aparência que você...  

- Impossível....

- Traspostos os portões... esqueça tudo o que sabia... a outra vida... tudo...

- Não diga coisas, eu vou a caminho de...

- De nada. Não sabe para onde vai. E mesmo que soubesse aqui isso não existe. Aqui somos simplesmente almas que vagueiam....


 

luz

Te acendo uma luz
Se fosse possível 
Pedia-te que me guiasses
Deixo a janela aberta e te aceno
O pavio da vela dança e vibra
As lágrimas de cera que pingam
Deixa-me sorrir para ti
...

segunda-feira, 28 de março de 2022

a consciência

E num assomo de remorsos, a consciência foi obrigada a soltar-se e regressar a casa, berço e partida, atirou um prato contra a parede e gritou, basta, raptada e aprisionada sobre si mesma, uivou do alto do minarete que ecoou no limite do esconço túnel escondido entre cristais toscos nas entranhas de um buraco.
Das luzes acesas da caverna à escuridão do brilho do sol, esta alma mortificada

me observo

Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.
Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradissimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo teria-me levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial  da sobrevivência. 
Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido. 
Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.
Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.
Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.
Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamaçento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perspassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário. 
Atravesso num carreiro de pedras envoltas num musgo que exala um odor que quase se permite morder no ar...

do contrário

Se o perto é o contrário do distante,
O distante ambiguamente solidário com o longe.
Longe, lá longe, mas tão perto de te deixar de ver;
Seria o perto uma aproximação do pequeno e minúsculo ponto que daqui observava?
Com os braços apoiados no parapeito da janela
Franzia o sobrolho para serpentear a luz directa de um sol.que não conseguia enfrentar.
Piscava os olhos e percebia
Nem longe ou distante,
Perto ou próximo,
Assim simplesmente, de onde me encontrava
Não poderia antecipar a aceleração de chegada do tempo que haveria de me pertencer.
Nada mais restaria, perante a enormidade do longe e distante,
Senão buscar os resquícios do belo.
Assim na grandeza das ilusões 
A miragem era o sustentáculo da esperança.
(¤ Rui Santos)

até onde poderei ir

"O homem que não consegue alargar os seus horizontes de observação, será incapaz de aprender e compreender além do que a ponta do seu nariz consegue alcançar. Ao invés, muitos que não conseguem viajar para além da força dos seus remos, optam por escavar um buraco e aprofundar a distância que os separa da linha da camada superior dos primeiros arbustos. 
Cavar um buraco como quem constrói a sua própria sepultura. Se não posso ir mais longe, pelo menos ficarei muito mais distante do lugar onde me prenderam."
Dagoberto de Andrade, 1848