segunda-feira, 28 de março de 2022

do corpo

"Depois de terem descoberto o que restava do meu corpo, o inspector do Departamento Central de Crimes e Homicídios, Augusto Barroso, olhava apreensivo para a minha pele mumificada. Passados dezoito anos do meu estranho desaparecimento; para uns absolutamente incompreensível ao mesmo tempo que seria expectável para uns quantos demasiado atentos às minhas movimentações,   a inusitada descoberta de uma barcaça enterrada no lodaçal da margem esquerda do rio Amarelo, permitiu descobrir o meu corpo.
Aquele casaco de cabedal comprado numa das primeiras viagens a Macau devidamente aprumado ao corpo, os óculos de sol que tanto apreciava usar e que me registava a pose de aviador tapavam as órbitas oculares rasgadamente abertas e evitaram a percepção do registo que ficou imortalizado na minha face.
Imagino agora o momento assustador em que o casco foi retirado e aquele enxame de raios solares que me descobriram e penetraram pelo reflexo das lentes através das orbitas vazias devem ter provocado nos homens que a forcá braçal puxavam a corda.
Mais tarde entre 2 copos de whisky Augusto Barroso confidenciava o terror transmitido pela minha expressão "Um homem que sempre  pensa ter visto tudo na vida é atraiçoado a cada novo passo. Ninguém conseguirá ser tão mau que mereça uma morte assim."
Durante dois dias o que restava do meu corpo foi transportado dentro de uma caixa frigorífica com uma temperatura absolutamente gélida que congelou as poucas nervuras que ainda me restava. Descemos o rio Amarelo em direcção ao primeiro porto de civilização, daí embarcado com o contigente de buscas zarpamos por mar aberto, revolto e talvez acusando a revolta da descoberta, esventrado de si retiraram algo que não deveria ter voltado a conhecer a luz do dia e dos olhos dos homens.
Fui descongelado de forma controlada. Assim sem mais palavras que pudessem explicar a forma de proceder. Imaginar uma pedra de gelo a derreter ao mesmo tempo que refresca um copo de água era a ideia que mais me perseguia.
A médica forense recusou acelerar a autópsia por forma a não comprometer as eventuais provas que testemunhassem e fizessem regredir pouco mais de dezoito anos, desde a data do meu desaparecimento, e que trouxessem à luz alguma clarificação do sucedido.

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