quinta-feira, 30 de abril de 2020

Reza a lenda que um dia um rei habituado a tertúlias faustosas com as suas aias, para que os seus uis não fossem alvo de cobiça pelos seus súbditos plebeus, declarou institucionalizar alguns actos como pecados. Quem ousasse prevaricar seria consumido em terra por afronta aos deuses. A lista de pecados foi proclamada em voz alta do cimo de um púlpito pelo chefe dos eunucos.
O povo era obrigado por lei a não pecar, enquanto o rei tinha um salvo conduto especial que o isentava de respeitar a lista dos pecados desde que o seu povo se mantivesse sossegadinho sem praticar as porcarias morais.
Um dia o povo revoltado, no mesmo local onde há décadas atrás o chefe dos eunucos tinha proclamado o advento dos tempos da moralidade, um ermita regressado de uma caminhada solitária pelo mundo, despiu as suas vestes gastas e com o cajado na mão gritou bem alto "quem com as suas públicas virtudes tente esconder os seus vícios privados; quem com as suas vestes límpidas esconda a sua carne de pecado; todos esses que afrontam a natureza da sua origem, Jamais serão respeitadores da moral que deve obedecer a condição entre os homens".
Nesse final de tarde, na praça central elevaram-se línguas de fogo que tocavam os céus, e todos, todos sem excepção cantavam, bebiam e cantavam em redor da enorme fogueira as trovas do prazer.
Dagoberto de Andrade, habitante da península Esgríncia  (1848)
《A nobreza das palavras afronta e confronta directamente com a vacuidade do acto.
O juiz ao entrar na sala de audiências do tribunal de primeira instância ordenou com um tom de enorme severidade "Levante-se o réu."
O homem sentado à sua frente, precariamente instalado num corrido banco de madeira, não reagiu à ordem do juiz. Simplesmente não se mexeu continuando a olhar para os atacadores dos seus miseráveis sapatos.
"Levante-se o réu, rápido que não tenho tempo a perder"
E nada.
"Oiça lá você está a gozar com o tribunal?"
E nada.
Sua eminência do alto do generosamente estofado cadeirão lança uma estridente martelada na mesa; martelo este usado para encerrar o veredicto das audiências e demais actos de julgar o culpado ou o inocente, que ecoou pela sala em peso proporcional do susto e do medo afligido nos demais presentes.
Solitário homem sem advogado por imposição do próprio que prescindiu de outra cabeça que não a sua para legitimar a argumentária a contestar, levantou os olhos cavados dentro das órbitas e riu-se. Gargalhou ao mesmo tempo que descruzava e voltava a cruzar as pernas agora em sentido contrário.
Murmúrio. Murmúrios na sala.
"Ordem na sala! Ordem senão mando evacuar a sala" e olhando em direcção do homem "Será multado por desobediência ao tribunal e à figura do juiz, aqui seu máximo e primeiro representante"
Levando a sua mão direita à cabeça, afagando a alta testa como que limpando o suor inexistente; aquele esquálido rosto aparentava uma infindável paciência de quem teria já passado o tempo em que o tempo por si só fosse um pretexto para uma urgência deixada de existir há muito tempo atrás. Solenemente "O meritíssimo juiz entrou na sala e sem dar a devida saudação aos presentes berrou para que o réu se levantasse. Eu como não me considero réu e muito menos culpado do que quer que seja fiz-lhe o favor de respeitar a sua ordem.  Em consciência não me levanto a não ser que o meritíssimo juiz tenha a dignidade de descer desse cadeirão e aproximar-se para me cumprimentar.  Aí sim por humilde educação granjeada ao compasso do tempo passado farei o obséquio de o saudar calorosamente".
Irritado e não menos surpreso o juiz volta a bater com o martelo no verniz lustroso do tampo da mesa "Está encerrada a audiência por desobediência do réu para com o tribunal. Seja detido o réu e levado para os calabouços "
Voltando a descruzar as pernas, agora para erguer o cadavérico corpo "Como é que o meretíssimo juiz declara encerrada a audiência de algo que não chegou a iniciar?"
De imediato o juiz reclama "Senhores agentes da autoridade prendam-me este homem que não suporto mais desaforos."
De pé o homem responde "Eu sou Adérito e a plateia quando entrei já estava preenchida. Aqui me deixei ficar até que alguém me pedisse para desocupar o lugar. Sabe meretíssimo juiz é que eu só cá vim ver o espectáculo que é julgar os outros quando se tem a barriga cheia. O réu ainda não chegou e o baile está armado tal qual se dizia na minha terra."
Lívido de cor e forças "O senhor não é o réu?" remata o juiz.
Com sorriso mordaz os olhos amarelecidos que pareciam ganhar alma rejuvenescida neste homem, agora de pé "Serei se o meretíssimo juiz conseguir ser competente o suficiente para provar que eu sou culpado do que quer que seja. Até lá só sou Adérito. Meretíssimo, ao seu dispor"》
Rui Santos  (27.11.17)
Adérito no rés do chão, acabado de tirar a correspondência e demais tralha publicitária da caixa do correio, observa de soslaio a lânguida vizinha do oitavo direito que aguarda a chegada do elevador.
Afoito e galgando apressadamente os mosaicos do patamar térreo, rapidamente vence a distância que os separa e lança um inequívoco sinal para que suspenda o início da marcha elevatória dessa mágica "caixa transportadora".
Com sorriso largo remata - "Bom dia dona Clotilde, vai subir?!"
Clotilde do alto dos seus saltos maquiavelicamente altos e espartilhada num longo vestido preto, olha com desdém tal figura. É obrigada a baixar o ponto de mira dos seus olhos vincadamente negros em direcção de Adérito. É um desnível de quase 30 centímetros que mesmo assim não amedronta a postura de machista marialva deste seu sempre inconveniente interlocutor.
Entre dentes deixa soltar um estalido de reprovação ao mesmo tempo que diminui tal figura grotesca à sua temerária condição de presa ora antes de predador. - "Oh senhor Adérito, acha mesmo que vou subir! Estou aqui á frente do elevador só a passar tempo. Deixe-se de marialvices. Cumprimentos à esposa!"
Adérito não teve coragem de entrar no elevador; engolido com a sua vergonha e desejando que a porta do elevador por fim fechasse suspirou por todos os seus poros um interior - "Esta cabra tem mania que é boa"
Sobe o elevador e ouve-se em fundo um gargalhar que se dissipa à medida que os patamares são vencidos.
Houvesse de novo o dia em que recordasse as vezes sem fim que os carris, torcidos e disformes,  retirados da viagem certa, desembocavam sempre e sempre na certeza, e de tal forma previsível, ao ponto de muitas vezes circular sem maquinista. 
Sôfrego, a tempo, descobri o ponto do circuito onde nesse preciso lugar, toda previsibilidade da constante distorção poderia ser revertida num outro destino certo e seguro.
O caminho foi enfim vencido, sem bem saber se nessa outra viagem o destino ancoraria num porto acolhedor, mas entre cruzar o certo da negritude ou a certeza da alternativa desconhecida, bem, meu caro, puxei freios e estanquei o rumo.
Outra viagem seria iniciada.
Rui Santos
Levantai a cabeça
Ousai revoltar contra os instituídos
Rebelai contra os impostos e obrigados
Derrubai os muros e cercanias
Cortais os arames farpados
Saltai
Saltai outra e outra vez
Muitas quando necessário
Ousai pensar
Ousai
Ousai lutar
Ousai
Ousai vencer
Levantai a cabeça...
Oh angústia Suprema senhora que não me larga Que me tornas órfão no teu regaço Oh angústia Dona de mim que me abraças Não me abandonas nas horas sãs Perseguem-me os teus passos Oiço a tua voz que cala a minha vida Os teus bracos que me abraçaram São agora raízes de mim Oh malvada angústia Um dia quando morrer Na minha eternidade te encerrarei E a tua paixão enclausurada A tua força angustiante Para todo sempre será o meu alimento
Madrugada que se finda
Ainda forte e pronunciada
Rasgos de luz que se encaminham
Vão perfurando por entre as nuvens
A esta hora já os corpos serviçais
Os gentios amargurados e sentidos
A esta hora os obliterados caminham
Barco após barco
Comboio após comboio
Todos se entrecruzam
A esta hora por uns miseráveis dinheiros
Os gentios que não adormecem
Retornam o seu pesadelo
Descalços vão à sua míngua fonte
E lá restam...
"O dia de São Valentim,  vulgo dos namorados, é inspirado num plebeu que enamorado por uma donzela, se ofereceu à sua amada dentro de uma lamparina mágica. Desastrada a donzela, seu nome Clarice de Godoveia, deixou-o aprisionado dentro do artefacto pela eternidade.
Quando a donzela morreu, o espírito do plebeu foi finalmente liberto e juntos se uniram numa outra vida.
A história imortalizou desta forma o homem enamorado que viveu aprisionado em nome de uma promessa de amor."
Dagoberto de Andrade, habitante da península Esgríncia, 1848

sexta-feira, 24 de abril de 2020

recuperação antiga

"Sob o manto diáfano, aquela silhueta de contornos imprecisos que se esconde na translucidez da sombra prateada remanescente do corpo da Lua, permitiu perceber o quão belo era a sensação do negrume.
A Morte dançava pelo salão, reflectia uma luz violeta compassada ao sabor dos lentos movimentos que a guiavam. Observando de fora, aquela sincronia errática, absolutamente a destempo, baralhavam a metódica percepção da sombra que dançava quase abraçada ao seu par corpóreo.
Acabou a dança.
Negrura.
Carpe noctem eterna..."

24.4.2015

Liberta-me opressora
Amada e desejada
Carcereira que em teu cárcere me tens
Retenho-me nos teus braços
Sobrevivos ao aconchego
Liberta-me de mim
Aqui jaz num momento

24/04/2019

E naquele dia ninguém morreu em nome de deus. deus não matou ninguém, nem deu ordens para provocar outra guerra.
Nesse dia as crias terrenas perceberam o tamanho equívoco em que viveram mergulhados até então.
À noite, após o final do dia, muitos deles resistiam e debatiam a validade dos novos ventos. Mal o sol em alvorada se aprontava, muitos homens, muitos muitos mais que as contas podiam abarcar, anunciavam ao mundo o nascimento de uma nova doutrina.
Novamente e após não terem aprendido nada com os escuros dias antes vividos, era edificada a promessa de uma outra e inquestionável ideia. Afinal, deus vestido de novas vestes, apresentava as velhas ideias.
Em Meu Nome caminharás no obscuro, não duvidarás e em ti não suscitarás a dúvida. Obdecerás cegamente e te prometerei o lugar eterno depois da tua morte e quando o teu nome não mais for que um apenso na lápide, aí verás a recompensa do teu sacrifício embora lamentes por antecipação nas tuas preces o facto de nessa altura não estarás cá.
Vós não aprendeis nada com o passar da espuma dos dias.
Nesse dia a cruz voltou ao ponto mais alto da montanha.

sábado, 18 de abril de 2020

18 de Abril de 2016

Gritou alto - Quem lhe deu o direito? E nesse mesmo instante caiu estrondosamente no chão. Num ápice dobrou-se-lhe os joelhos. Se estivesse lúcido esse primeiro embate das rótulas na pedra calçada teriam causado uma dor horrível. Dobradiças móveis e sem o repuxar da tensão dos nervos e músculos, o corpo tombou para a frente. Uma tábua autêntica, se não houvesse outra comparação possível, um homem quando inanimado cai é o semelhante de uma tábua.
Até na queda inanimada o homem tem de ter a sua dignidade.
Mas a tábua não tem cabeça e este homem está prestes a rachar o seu crânio contra o chão. O som que se ouviu não tem explicação, seco e oco, sem repique. Inerte e imóvel, jaz ali mesmo. Não se sabe se morreu mas este corpo não tem sinal de vida. As suas últimas palavras foram um grito interrogativo. Quem é que tinha o direito? Não sabemos. Foi dado como morto. Morreu.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

3/1/2020


Não me lembro de ter vivido em paz.
Os momentos passados em silêncio eram de uma terrível sensação de ansiedade e medo. O silêncio é prenúncio de terror. A espera. A angústia da espera.
No imediato momento em que começa a soprar o zumbido é sinal que nas imediações vão cair engenhos da guerra.
Nada mais resta intacto que mereça ser destruído. Mas a guerra parece que é assim mesmo.
Desde que sinto a "memória" viva e permanente na cabeça, ela vem sempre acompanhada de momentos de fuga. A memória ao contrário do que alguém possa querer explicar, não são pedaços do passado revistos e projectados pelas traseiras dos nossos olhos para dentro da cabeça, tal qual uma caixa de luz emite as sombras em movimento.
A memória é uma urgência. A memória são cheiros reais dos corpos estropiados exalando odores putretactos. É molhada pelas poças de lama que espirram quando corres e corres sem noção de teres perdido as forças para que consigas correr ainda mais depressa do que a velocidade dos estilhaços que nos vão acertando.
Olha, aquele era dos últimos a ter fugido. Corria porque foi atrás dos outros em vez de ter tentado salvar a sua vida.
Foi por impulso em vez de ir na urgência da vida. É totalmente diferente, fugir para viver ou fugir atrás de alguém para se salvar.
Viver é correr mais e mesmo assim tão pouco; fugir de lado nenhum para qualquer sítio onde não possa ser alcançado por uma bomba ou seus estilhaços; saltar por cima da destruição e enganar as miras apontadas das munições dos ocupantes.
Ainda há tempos atrás alguém vinha a meu lado, corríamos em ziguezague. Ele chorava de gritos. Gritava a chorar. Pobre coitado. Não o consegui mandar calar porque me iria distrair e perder o sentido do som das balas.
Elas vinham todas de cima, lá do  cimo dos terraços dos arranha-céus. Apontadas primeiro à cabeça e só depois se necessário às pernas para levantar a mira novamente à cabeça para terminar o serviço.
Ele corria três passos atrás dos meus, pisava as minhas marcas. Corria atrás de mim. A bala que era para me ter acertado acima dos olhos, raspou o escalpe e foi-lhe apanhar o peito. Calculo que lhe trespassou o externo e nem os pulmões amorteceram com a sua massa mole a força da bala.
Deixei de ouvir o choro.
Não olhei para trás.
Segui. Por raios quem insensibilidade. Não parei para prestar auxílio. Nem sabia que isso existia.
Como posso ter memória tão presente de algo que não vi e que imagino ser real. Parece que o vi cair no chão mudo, calado e sem que lhe tivesse doído a queda.
Nunca houve paz, sentimento intraduzível por quem nunca a viveu e que sem memória dela, não a pode recordar.
O que é a paz.
Bem, a paz poderia ser simplesmente a falta de munições que os atacantes têm à sua mercê e parece ininterruptamente não lhes faltar. Devem ter uma grande fábrica com que construiram as minhas memórias.
Consegui fugir de ser um alvo em movimento. A maior parte do tempo simulava que estava morto. A restente parte passei-a a correr das balas à procura de refúgio.
Agora estou perdido no meio de uma floresta.
Não sei viver. Falta-me fugir das balas. Era a única coisas que os sobreviventes eram bons a fazer.
E agora.
Não sei o que é um dilema. Dilema é optar e decidir. Nunca tive hipótese de optar ou não por correr das balas assassinas. Nunca pensei em decidir se o caminho era o correcto. Era sempre o correcto caso contrário agora era húmus de mim impregnado nas ruínas da terra, local onde o atacante pudesse ter tido melhor pontaria.
Gostava de espreitar aquele local de memórias. Não faz sentido querer lá voltar.
Se é isto a que chamam memória, então estaremos todos tramados. Nunca aprenderemos nada com a memória. A memória do sofrimento pouco nos ensinará a sobreviver. 

8/1/2020


Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.
Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradissimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo teria-me levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial  da sobrevivência.
Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido.
Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.
Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.
Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.
Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamaçento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perspassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário.
Atravesso num carreiro de pedras envoltas num musgo que exala um odor que quase se permite morder no ar...