quinta-feira, 17 de março de 2022

dos despojos, (17-03-2020)

 dos despojos,

a solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias


Não me lembro de ter vivido em paz. 

Os momentos passados em silêncio eram de uma terrível sensação de ansiedade e medo. O silêncio é prenúncio de terror. A espera. A angústia da espera.

No imediato momento em que começa a soprar o zumbido é sinal que nas imediações vão cair engenhos da guerra.

Nada mais resta intacto que mereça ser destruído. Mas a guerra parece que é assim mesmo, tem começo sem fim.

Desde que sinto a "memória" viva e permanente na cabeça, ela vem sempre acompanhada de momentos de fuga. A memória ao contrário do que alguém possa querer explicar, não são pedaços do passado revistos e projectados pelas traseiras dos nossos olhos para dentro da cabeça, tal qual uma caixa de luz emite as sombras em movimento. 

A memória é uma urgência. A memória são cheiros reais dos corpos estropiados exalando odores putrefactos. É molhada pelas poças de lama que espirram quando corres e corres sem noção de teres perdido as forças para que consigas correr ainda mais depressa do que a velocidade dos estilhaços que nos vão acertando.

Olha, aquele foi dos últimos a ter fugido. Correram uns quantos e ele estava para trás. Correu porque foi atrás dos outros em vez de ter tentado salvar a sua vida. 

Foi por impulso e acção em vez de ir na urgência da vida. É totalmente diferente fugir para viver ou fugir atrás de alguém para se salvar.

Viver é correr mais e mesmo assim tão pouco; fugir de lado nenhum para qualquer sítio onde não possa ser alcançado por uma bomba ou seus estilhaços; saltar por cima da destruição e enganar as miras apontadas das munições dos ocupantes. 

Ainda há tempos atrás alguém vinha a meu lado, corríamos em ziguezague tricotando caminhos. Ele chorava de gritos. Gritava a chorar. Pobre coitado. Não o consegui mandar calar porque me iria distrair e perder o sentido do som das balas.

Elas vinham todas de cima, lá do cimo dos terraços dos arranha-céus. Apontadas primeiro à cabeça e só depois se necessário às pernas para levantar a mira novamente à cabeça para terminar o serviço.

Ele corria três passos atrás dos meus, pisava as minhas marcas. Corria atrás de mim. A bala que era para me ter acertado acima dos olhos, raspou o escalpe e foi-lhe apanhar o peito. Calculo que lhe trespassou o externo e nem os pulmões amorteceram com a sua massa mole a força da bala.

Deixei de ouvir o choro.

Não me lembrei de olhar para trás. 

Segui. Por raios. Insensibilidade. Não parei para prestar auxílio. Nem sabia que isso existia.

Como posso ter memória tão presente de algo que não vi e que imagino ser real. Parece que o vi cair no chão mudo, calado e sem que lhe tivesse doído a queda. Quando aterrou já ia morto.

Nunca houve paz, sentimento intraduzível por quem nunca a viveu e que sem memória dela, não a pode recordar.

O que é a paz.

A paz poderia ser simplesmente a falta de munições que os atacantes têm à sua mercê e parece ininterruptamente não lhes faltar. Devem ter uma grande fábrica com que construíram as minhas memórias. 

Consegui fugir de ser um alvo em movimento. A maior parte do tempo simulava que estava morto. A restante parte passei-a a correr das balas à procura de refúgio. 

Agora estou perdido no meio de uma floresta. 

Não sei viver. Falta-me fugir das balas. Era a única coisas que os sobreviventes eram bons a fazer até o deixarem fatalmente de ser.

E agora.

Não sei o que é um dilema. Dilema é optar e decidir. Nunca tive hipótese de optar não correr das balas assassinas. Nunca pensei em decidir se o caminho era o correcto. Era sempre aquele trajecto não escolhido o único possível, caso contrário agora era húmus de mim impregnado nas ruínas da terra, local onde o atacante pudesse ter tido melhor pontaria que a minha escolha tomada. 

Gostava de voltar a espreitar aquele local de memórias. 

Não faz sentido querer lá voltar.

Se é isto a que chamam memória, então estaremos todos tramados. Nunca aprenderemos nada com a memória. 

A memória do sofrimento pouco nos ensinará a sobreviver. Tornar-nos-á reféns de escolhas e subjectividades demasiado humanas. Faz-nos perder tempo e a morte é agiota do tempo.

O silêncio deste verde interminável que me esquece as sombras dos arranha-céus. Camuflados pela escuridão da massa de betão que se oponham à luz do sol, percorri a vida até então encostado o mais possível às paredes. Ninguém ensinou que as balas tracejantes necessitam de um angulo mais aberto para que possam ser bem sucedidas. Mal aventurados aqueles que fugiam dos estilhaços das montras e das línguas de vidros a explodir para o meio dos caminhos abertos. Quais técnicas avançadas de matança, armadilhas lançadas com sabor a morte.   

Menos um no contador mas mesmo assim não acelera o terminar da guerra. Se uma morte valesse de alguma coisa, esse seria o momento do agressor afrouxar os desejos de saborear os odores das carnes caídas ainda frescas no chão.

Esta sensação perturbante do silêncio.

Sentado no rebordo de uma árvore, seguramente seriam necessários uns vinte ou trinta fugidos para contornar aquela circunferência de madeira que resistiu ao passar dos tempos. 

Um corpo presente.

Um corpo gasto, esfomeado, sujo, cicatrizado.

A solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias.

Agonizando.

Para se experimentar a solidão é necessário em algum momento ter-se estado acompanhado e dependente de alguém que nos tome as rédeas da condução das decisões. Aquela era outra solidão. Mergulhado numa imensidão nocturna da anarquia da floresta que sobrevive crescendo numa luta vertical em direcção à primeira fímbria da luz solar, paira uma densa névoa respirada pelas plantas exalando odores de vegetação apodrecida e consumida pelas terras lodosas; tornava o espectro fantasmagórico.

O ar tornava-se cada vez mais ramificado e inebriante. 

Sensação de nuvens carregadas de chuva que podiam jorrar bátegas de água mas que inverteram-se. Pairam pelo chão e com as mãos consegue-se riscar traços abertos que permitem ver o chão.

E se subisse esta árvore, urgência do pensamento plasmado. É possível ver-se o pensamento? Subir a árvore para quê? Onde termina a floresta, o que haverá além? Estarei a caminhar a direito para longe do meu destino.

Sinto o desconforto do medo. Os barulhos, estava tão habituado ao terror dos gritos que interrompiam ao silêncio. Agora não oiço nada. Sou apanhado distraído com os sons da floresta. Rugidos do som do vento que circundam as árvores e serpenteiam por elas acima levando pedaços desta névoa térrea em espiral até me desaparecerem do meu alcance.

Lá em cima deve estar sol. Parece que vejo um certo piscar de luz.

Não tenho artes, forças ou forma de subir estes gigantes. 

Olho para as nervuras dos troncos e eles dançam. Oscilam numa espécie de bailado.

Corro sem saber onde colocar os pés. Tropeço. Levanto-me e agarro no primeiro pau que consigo apanhar. Que seres são estes? Fujo da guerra para um insano mundo de demónios. 

Sinto o restolhar do chão a aproximar-se. Passos estranhos que me confundem a orientação. Escondo-me encostado a uma árvore e semicerro os olhos para perceber o som que tento perceber mais próximo, a névoa que se possa demarcar e abrir passagem para o que esteja a aparecer. Levanto todos os meus sentidos e principalmente apuro o ouvido. Não oiço nada. Estará parado a espera que me mexa? Tenho que me manter imóvel. Sou demasiado pesado para esta espera. As pernas tendem a fraquejar.

Pesado não é o corpo assente naquele lodaçal, o que pesa é o medo.

Desço a mão esquerda e encosto-a ao corpo. Relaxo.

No bolso sinto a presença de um dos dois amuletos que carrego há tanto tempo, imenso que não consigo lembrar. Talvez numa das últimas mudas de roupa que consegui trocar com um dos corpos pouco ensanguentados com que me deparei num momento de pausa dos ataques. Não me lembro ao certo.

Aperto. Sinto a ponta rasa da munição que apanhei um dia do chão. Aperto com força à medida que atento ao movimentar da neblina que paira acima dos tornozelos. Volta aquele som. O que ali estiver estará próximo. 

Faço força com os olhos para ouvir melhor. Contradições dos sentidos. O ser humano não foi preparado para estar condicionado e privado das suas defesas elementares. O som de uma marcha que não avança. Torço a cabeça para dar amplitude ao melhor ouvido. Qualquer coisa estará ali. 

Começo a pensar ou duvidar se oiço sons ou se a minha cabeça simplesmente imagina a existência de qualquer coisa que ganha forma e musculatura de fantasia.

Fraquejo.

Se estivesse fora de mim e me olhasse atentamente teria a aparência de um esquálido ser.

Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.

Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradíssimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo ter-me-ia levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial da sobrevivência. 

Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido. 

Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.

Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.

Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.

Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamacento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perpassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário. 

Atravesso o espaço que não conheço por um carreiro de pedras envoltas em musgo que exala um odor, quase se permite morder no ar, percorro caminho que se apresenta virgem de passos perdidos desde um passado tão distante que esta selva desenfreada persistiu esconder.



 

 



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