quarta-feira, 30 de março de 2022

ironia da vida

Ironia da vida
Enquanto a Clotilde aproveitou para ir ao cabeleireiro e apresentar-se no almoço todo chique com as amigas, o Adérito foi à loja de ferragens e comprou um rolo de corda para se enforcar, atirando-se do quinto andar virado para a avenida principal.
Barricou-se por dentro de casa e matou-se do lado de fora da janela.
Já em pleno almoço, no meio de felizes e estridentes gargalhadas, o restaurante foi baixando o som e desviando atenção para a televisão que até ali mal marcava a presença.
A câmara do repórter debaixo de um som solene e monocórdico, apontava uma enorme escada dos bombeiros que a custo e de forma periclitante se abeirava do corpo já frio da vida.
A boa da Clotilde, levantou-se e em passos curtos muito nervosos, se aproximou da televisão pendurada no alto da parede. Reconheceu o prédio, a varanda, a sua roupa estendida que aparecia na imagem... e também o corpo que era descido da corda pelos dois bombeiros.
Era uma corda nova de nó fácil mas eficaz.
Balbuciou, porquê... Claro, porquê...
Entretanto, do silêncio irrompe o som do seu telemóvel. Aquele toque divertido que apelava a danças latinas das discotecas da moda. 
Era a dona do cabeleireiro onde a Clotilde tinha estado duas horas antes a dizer que tinha lá ficado um colar esquecido.
Ironia da vida.

terça-feira, 29 de março de 2022

do tempo, 10 de abril de 2011

 ... do Tempo....

- Tem horas? perguntou.

- Tenho sim, respondeu o outro. Tenho horas marcadas no meu relógio, tenho tempo passado na minha vida, tenho o passar destes momentos no presente que aqui estou à sua frente, tenho futuro sem saber qual e quão frutuoso será.

- E as horas, que horas são agora?

- Não sei que horas são agora. Das que quero ou que você quer, ou daquelas que nós precisamos, mesmo que em ultima análise sejam diferentes....

- Deixe-se de coisas, só lhe perguntei as horas...

- Mas eu só lhe respondi dando-lhe todas as horas e todas as respostas... São 4 horas e 18 minutos... que é que o senhor ganhou com isso? Está no tempo certo? Está adiantado para algo que não deverá fazer? Está a perder tempo? Está atrasado para algo que já deveria ter sido feito....

- Pois não sei... eu só queria saber das horas... mas agora... não sei... quem é você?

- Sou o dono do meu tempo.

- Ninguém consegue ser dono do tempo... só se for do que passou... mas do que vem... virá.

- Engana-se. Aqui estou sentado... enquanto estou aqui sentado o tempo não passa...

- Pois um velho sentado num banco de um jardim, curvado sobre uma bengala...

- Sim um velho... mas já cá cheguei... você aqui não chegou...

- Eu estou aqui...

- Mas daqui não sairá... para si o tempo parou... serão sempre 4 horas e 18 minutos... já eram, são e sempre continuarão a ser...

- Deixe-se de coisas, fantasias e tramas... até depois... até nunca mais... que raio de velho...

- Porque será que o seu pensamento pretende sair mas o seu corpo não continua....

- Não sei... não sei responder...

- Pois não... mal sabe onde está... o poder de decidir já não está nas suas mãos... aqui o tempo não corre... e falhando uma das dimensões as restantes deixam de encaixar...

- As restantes...

- Sim o espaço e o seu espírito... sem o tempo o espaço não se move e perde dimensão, depois o seu eu, confuso e inerte deixa de fazer sentido... com alguma sorte ficará sentado numa cadeira de um jardim....

- Fazendo o quê?

- Já tem perguntas? Aqui o «raio do velho» como você disse...

- Mil perdões... não sei porque o disse...

- Claro que não. Nós nunca sabemos nada daquilo que não nos interessa.

- Está aqui sentado há quanto tempo? Há quantas horas está aí parado?

- Sei lá... já lhe perdi a conta...

- Almoçou ao menos?

- Aqui não se almoça. Quando aqui outro me deixarou, eu era pouco mais velho de aparência que você...  

- Impossível....

- Traspostos os portões... esqueça tudo o que sabia... a outra vida... tudo...

- Não diga coisas, eu vou a caminho de...

- De nada. Não sabe para onde vai. E mesmo que soubesse aqui isso não existe. Aqui somos simplesmente almas que vagueiam....


 

luz

Te acendo uma luz
Se fosse possível 
Pedia-te que me guiasses
Deixo a janela aberta e te aceno
O pavio da vela dança e vibra
As lágrimas de cera que pingam
Deixa-me sorrir para ti
...

segunda-feira, 28 de março de 2022

a consciência

E num assomo de remorsos, a consciência foi obrigada a soltar-se e regressar a casa, berço e partida, atirou um prato contra a parede e gritou, basta, raptada e aprisionada sobre si mesma, uivou do alto do minarete que ecoou no limite do esconço túnel escondido entre cristais toscos nas entranhas de um buraco.
Das luzes acesas da caverna à escuridão do brilho do sol, esta alma mortificada

me observo

Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.
Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradissimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo teria-me levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial  da sobrevivência. 
Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido. 
Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.
Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.
Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.
Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamaçento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perspassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário. 
Atravesso num carreiro de pedras envoltas num musgo que exala um odor que quase se permite morder no ar...

do contrário

Se o perto é o contrário do distante,
O distante ambiguamente solidário com o longe.
Longe, lá longe, mas tão perto de te deixar de ver;
Seria o perto uma aproximação do pequeno e minúsculo ponto que daqui observava?
Com os braços apoiados no parapeito da janela
Franzia o sobrolho para serpentear a luz directa de um sol.que não conseguia enfrentar.
Piscava os olhos e percebia
Nem longe ou distante,
Perto ou próximo,
Assim simplesmente, de onde me encontrava
Não poderia antecipar a aceleração de chegada do tempo que haveria de me pertencer.
Nada mais restaria, perante a enormidade do longe e distante,
Senão buscar os resquícios do belo.
Assim na grandeza das ilusões 
A miragem era o sustentáculo da esperança.
(¤ Rui Santos)

até onde poderei ir

"O homem que não consegue alargar os seus horizontes de observação, será incapaz de aprender e compreender além do que a ponta do seu nariz consegue alcançar. Ao invés, muitos que não conseguem viajar para além da força dos seus remos, optam por escavar um buraco e aprofundar a distância que os separa da linha da camada superior dos primeiros arbustos. 
Cavar um buraco como quem constrói a sua própria sepultura. Se não posso ir mais longe, pelo menos ficarei muito mais distante do lugar onde me prenderam."
Dagoberto de Andrade, 1848

em paz

Com o passar dos dias as rugas começaram a desaparecer e a suavizar. No lugar delas foram cavadas linhas precisas, separadoras e delimitadamente profundas, anunciando todo o presente que sempre foi e se tornou num passado longínquo enquanto o advento do futuro se apresenta como uma ideia difusa e imprecisa. 
Deixar de pensar o futuro. Por incrível que possa parecer, a ideia do agora ou amanhã era impossível fazer transportar pelos circuitos lodosos do pensamento. Lembranças de ontem e do antes ou até a sensação do roçar daquele lençol sedoso pelo corpo. 
As vozes, ouvir os sons. O som é a consumação do passado recuperado pela ideia de estar vivo e presente. 
Aquelas rugas como um sinal do advento e consumação percorrida foram assumidamente perdidas. O corpo começava a secar, embora não sabendo que lá em cima chovia torrencialmente, ainda não seria o bastante para humedecer as terras e torrões interiores.
Aquele odor a compartimento fechado, bafo gaseificado de toda uma vida nunca até então interrompida, era disfarçado pela irrequieta habituação da sua presença.
O corpo distraído extinguia-se. 
Passaram precisamente trinta dias e uma torrente de vultos se aproximava, desde longe que o burburinho se transformava numa alarvidade de vozes. Aquele constante e ritmado bater da chuva nas poças era misturado com os passos do cortejo. Recomeçava a ladainha acompanhada do choro e queixume. 
Uma voz murmurou. 
Acabou-se o descanso e a paz.
Faz trinta dias que as rugas começaram a disfarçar e os sulcos da carne iniciaram o seu processo de mumificação. 

por terminar

E de repente a vida vira-se do avesso 
E descobres que o avesso é que é o teu lado certo.

ciclo da vida

E chegado ao destino a morte perguntou se estaria preparado para a acompanhar. Um murmúrio de vozes crepitando soluços chorados, adivinhava a passagem daquele estado de tudo para um outro de nada. 
Lá longe, tão longe quão conseguiria perceber estava uma pequena comissão de boas vindas, de vozes tão trágicas e encenadas, tantas vezes quantos aqueles que morreram.
Aqueles outros, ali fora pendurados, que por não terem morrido, mas antecipado a data prevista da sua morte, esses não eram bem vindos. Ficavam simplesmente. 
A morte e todo o seu séquito de acompanhamento nunca abririam a porta aos suicidas. Esses traidores que contrariavam a linha básica da existência. 
Ali, simplesmente se iluminava o caminho para os escolhidos.

. E esse saco que trazes é o quê? 
. É um saco vazio cheio de nada. Deixei lá tudo, mas trago as perguntas.
. As tuas perguntas não têm resposta... e simples assim; nada, e neste eterno futuro do nada e não de nada, encontrarás a contemplação do vazio. Nunca mais serás. 
. Este choro que ainda oiço? 
. Não é choro. É o peso da culpa. Esses lamentos vociferados terminarão quando de ti não sejas mais que uma longínqua memória. Enquanto de ti se lembrarem, ouvirás uma fraca sensação de zumbido. Vozes carpideiras que replicam murmúrios. Depois o mármore deixará ser luzidio e ficará sujo, sujo da culpa e do esquecimento. 
. E a vida...
. A morte é a nova vida

do corpo

"Depois de terem descoberto o que restava do meu corpo, o inspector do Departamento Central de Crimes e Homicídios, Augusto Barroso, olhava apreensivo para a minha pele mumificada. Passados dezoito anos do meu estranho desaparecimento; para uns absolutamente incompreensível ao mesmo tempo que seria expectável para uns quantos demasiado atentos às minhas movimentações,   a inusitada descoberta de uma barcaça enterrada no lodaçal da margem esquerda do rio Amarelo, permitiu descobrir o meu corpo.
Aquele casaco de cabedal comprado numa das primeiras viagens a Macau devidamente aprumado ao corpo, os óculos de sol que tanto apreciava usar e que me registava a pose de aviador tapavam as órbitas oculares rasgadamente abertas e evitaram a percepção do registo que ficou imortalizado na minha face.
Imagino agora o momento assustador em que o casco foi retirado e aquele enxame de raios solares que me descobriram e penetraram pelo reflexo das lentes através das orbitas vazias devem ter provocado nos homens que a forcá braçal puxavam a corda.
Mais tarde entre 2 copos de whisky Augusto Barroso confidenciava o terror transmitido pela minha expressão "Um homem que sempre  pensa ter visto tudo na vida é atraiçoado a cada novo passo. Ninguém conseguirá ser tão mau que mereça uma morte assim."
Durante dois dias o que restava do meu corpo foi transportado dentro de uma caixa frigorífica com uma temperatura absolutamente gélida que congelou as poucas nervuras que ainda me restava. Descemos o rio Amarelo em direcção ao primeiro porto de civilização, daí embarcado com o contigente de buscas zarpamos por mar aberto, revolto e talvez acusando a revolta da descoberta, esventrado de si retiraram algo que não deveria ter voltado a conhecer a luz do dia e dos olhos dos homens.
Fui descongelado de forma controlada. Assim sem mais palavras que pudessem explicar a forma de proceder. Imaginar uma pedra de gelo a derreter ao mesmo tempo que refresca um copo de água era a ideia que mais me perseguia.
A médica forense recusou acelerar a autópsia por forma a não comprometer as eventuais provas que testemunhassem e fizessem regredir pouco mais de dezoito anos, desde a data do meu desaparecimento, e que trouxessem à luz alguma clarificação do sucedido.

esse beijo reclamado

"Dei-te um beijo e levaste-me ao céu. Entrámos no elevador e roubei-te o beijo. Podias ter reclamado da sua posse mas não, acabaste por não retribuir ou recusar. Quando se abriram as portas do elevador saímos no 33.o andar. Estávamos no céu. O mundo lá em baixo era real. 
Aquele compartimento de portas automáticas tinha acabado de me fazer subir para lá do que a minha vista alcançava cá de baixo, deixava no ar o som seco e metálico de ter acabado de cerrar passagem. O zumbido da subida amorteceu e deu lugar a um plim sonoro avisando a chegada.
O teu beijo foi um sonho com sabor a ar puro.
Percorri o corredor e as luzes iam acendendo-se à medida que caminha. O meu rasto era apagado da história assim que o sensor das luzes dava sinal de terminado o movimento. 
Uma a seguir à sua próxima ia sendo apagada com uma cadência milimétrica. 
Lá fora no terraço fiquei com a sensação de ter faltado com a promessa de um beijo.
Ali estava eu prisioneiro de uma memória. Fazia naquele preciso momento 8 anos que tinhas galgado os muros e puseste fim ao teu sonho de viver.
Viagem vertiginosa. Dizem que é uma fracção de segundo e o resto não quero adivinhar.
O terraço ainda guardava uma memória da minha última visita - a jarra amarrada, vazia, seca e amarelecida.
Entrámos no elevador e descemos, sempre com a sensação de que tinha faltado um beijo prometido e jamais seria reclamado. O que fui ali buscar e trazia comigo era muito menos do que me acompanhava antes de ali chegar. 
A jarra ficou vazia, as luzes apagaram-se, o elevador abriu automaticamente as portas e fui impelido a sair como se uma força invisível estivesse presente a fazer o papel de porteiro. 
Saída por entrada sobe novamente o elevador. Um homem gesticulando ao telemóvel sobe para um andar que não dei conta; mal sabe ele que ficará dentro de segundos falando sozinho. 
Cá fora olhei de baixo em direcção ao terraço do 33.o andar e não conseguia alcançar o local.
Aquela morte inexplicada era um constante vazio. 
Vazio ficou."

Requiem da desesperança

A boa nova chegou,
Cristo o Jesus, se anunciou de forma contudente;
Mares revoltos acalmados pelo sopro do assobio melódico ,
Tufões e invernias que deram lugar a primaveras luminosas simplesmente porque assim se agarrou com o movimento da sua mão esquerda os fios do vento tal qual como se comanda uma marioneta,
Guerras que caladas e bombas não detonadas, embora não dando lugar à concórdia entre os homens, que a paz é na mesma difícil mesmo sem armas; e se estas deixaram de matar os homens ainda assim lhes sobra a força das mãos.
Inequivocamente, Cristo o Jesus deu as suas provas de messias regressado à terra dos homens para que não fosse confundido com qualquer semelhante pregador sem artes de ler o destino destes gentios.
Bastou que as flores germinadas e secas pelo sol tórrido, 
Bastou que da terra solta e seca agora húmida pelos dias sombrios e alagados na invernia,
Pouco bastou, 
Quase nada em comparação com as ânsias provocadas pela sua aparição para se descobrisse falhado.
Decidindo sobre o seu destino,
A boa nova proclamada pela inequívoca presença se esfumou,
Sou a imagem do vosso projecto falhado de humanidade,
Sou o humanismo pungente que não consolidaram e ensinaram aos vossos filhos desde os tempos dos antigos avós sanguíneos,
Sou o vosso filho e a vossa imagem,
Sou o vosso pai e a minha obra não começada,
Sou todos os vossos antepassados. 
Afinal de contas não deixei de ser a vossa cobiça e egoísmo perpetuado num constante presente prolongado pela existência do futuro que confirma a cada passo o genocídio que cometem.
A boa nova não foi suficientemente sofrida para que por ela abdicassem da vossa condição de viver.
Outro chegará e às mesmas palavras que ouvirem reconhecereis estas que sendo ditas agora serão o futuro deste pretérito imperfeito.
(Requiem da desesperança)
Dagoberto de Andrade, habitante da península Esgríncia  (1848)

absinto da vida (a terminar)

Absinto a pureza da criação de uma substância que inebria os sentidos já de si toldados pela deturpação da realidade pela fantasia e pelos demónios. 
Por filtração e destilação contínua até apurar o álcool em substância suprema, a cada pequeno trago, o corpo recebe em si a complexidade de uma combinação explosiva capaz de por combustão derreter as matérias mais resistentes. 
O ardor nos lábios, a língua que arde, o esófago que urge ajudar no transporte sem regurgitar, a pancada que assenta no estômago. Confundir o elixir com os ácidos e o início da revolução pela mistura. 
Cá em cima uma pancada com o copo na mesa sincronização perfeita com o estalido. Paaaaa. E assim abrir a boca para exalar os últimos vapores não consumidos. 
Barriga vazia de conduto exposta à querosene do prazeroso sabor. 
O cérebro entra em alerta e espera

da vergonha (a terminar)

Vergonha que se ousou esconder
Escondida atrás da sua vergonha
Deslumbrada com a ousadia do acto 
Simplesmente
Ai minha vergonha, dizia
O que será de mim quando da vergonha
Nada restar se não a sua falta
Algum dia teria de a perder
E agora pensava

dos machos latinos

A Clotilde estava enamorada do Antunes. 
O Antunes um ordinarão gigolo de bairro apaixonou-se pela Clotilde, dizia ele que estava na altura de mudar o rumo da vida. Assentar tijóis. 
Ela era fraca nas vontades de cama. 
Ele era macho lusitano demasiado afoito. 
Lá casaram... 
Ela detestava ver porno e sites javardões. 
Ele era calejado dos teclados. 
Ela resmungava até ao dia em que o Antunes lhe comentou que adorava ver vídeos de homens a massajar mulheres e coise... 
Nesse dia e nos seguintes ela teve massagens sempre que coitavam
Hoje em dia ela parece mais relaxada e ele tem tendinites
Coitado do Antunes que não consegue mexer as mãos
Já a Clotilde continua de músculos descontraidos 😏😏😏

a terminar

Casamento, princípio utópico do verbo Ter

a estaca da ideia

Plantei uma ideia que resulta e não posso deixá-la simplesmente morrer. Essa ideia tem a estaca inicial colocada depois da semente que germinou ter dado origem a um bonito pé de flor com duas simétricas folhas.
O pé quase secou nos primeiros raios de sol, mas ia sendo regado à medida da lembrança e a custo lá deve ter vingado na progressão dos ciclos da natureza.
Quando terminou o primeiro Verão e o Outono ia longo, das primeiras duas folhas que ramificaram em outros pequenos braços, coloquei a estaca ordinariamente segura e enterrada no canteiro.
No primeiro inverno, essa ideia de planta fez a triste figura de abandonada à sorte. Se por si resistir, muito bem. Se não vingar, a natureza falou por si.
O milagre da natureza aos olhos dos humanos é que ela acerta o passo e funciona mesmo quando não estamos a tomar atenção ao que por lá se passa, se calhar até funciona melhor atrás dos nossos olhos.
Se esta ideia fosse um recém nascido, já estaria a gatinhar e chorava como sempre fez para pedir atenção. 

e se não te conhecer

Da partilha
Quais são as músicas que tanto ouves com os auriculares no teu telemóvel
Quais são as séries e filmes que aprecias ver naquela aplicação no teu telemóvel
O que é que tu pensas em silêncio quando andas às voltas nas redes sociais no teu telemóvel
O que quer dizer o teu silêncio encoberto pelo som das notificações mudas do teu telemóvel

a terminar

Vivemos de tempo emprestado 

tempestade

... tantas vezes olhei para dentro da tempestade 
disfarçada de mar chão, 
... tantas vezes 
sabia que ela ali estava 
marinando lentamente num encorpar de forças  que se agrupavam.
Ao longe, na terra segura
a vida corria distraída 
lançando uma, outra e todas as vezes, os dados da sorte
Saiu no negro, na carta da morte 
Quando ela bateu em terra
ali estava 
olhando de dentro das paredes do demónio
agora é tempo de aguardar,
Vai correr tudo bem!

tardiamente

Amor, aqui me tens, aqui estou
Quero ouvir o que tens para me dizer, quero viver os teus sonhos e pensamentos, conhecer como corre o tempo que imaginas para nós, ser parte desse momento.
Amor, estarei sempre presente e ao teu lado. Sente-me aqui, mesmo no silêncio, que consigamos unificar a força que juntos iremos multiplicar no resto dos nossos dias.
Amor, sê forte por nós
Amor, prometo que nunca mais te faltarei
(Minha senhora, temos que fechar a urna, tem de ser...) 
Dê-me só mais um minuto, 
Um simples minuto, uma eternidade plasmada numa fracção de tempo emprestado.
Agora é tarde, é sempre demais depois da sensação da oportunidade perdida e desperdiçada
(Vamos fechar)
Ainda tenho tempo amor, amor
Amor olha para mim então
Olha por mim
Não quero mais a minha ausência em ti, 
Tu estavas em corpo presente, desencontrados no mesmo espaço e tempo em que pareceu termos vivido
Eu estava em corpo presente desencontrada de ti no mesmo tempo e espaço que partilhamos
Partilhámos
Sinto que já tinha ido e que cá não estavas 
Sinto espaços fechados entre reticências que preenche um tempo passado que desconheço ou dele não tenho memória 
(Fechemos a tampa) 
Desçam-me, agora não é altura para fazer de conta que as memórias existem 

quinta-feira, 17 de março de 2022

dos despojos, (17-03-2020)

 dos despojos,

a solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias


Não me lembro de ter vivido em paz. 

Os momentos passados em silêncio eram de uma terrível sensação de ansiedade e medo. O silêncio é prenúncio de terror. A espera. A angústia da espera.

No imediato momento em que começa a soprar o zumbido é sinal que nas imediações vão cair engenhos da guerra.

Nada mais resta intacto que mereça ser destruído. Mas a guerra parece que é assim mesmo, tem começo sem fim.

Desde que sinto a "memória" viva e permanente na cabeça, ela vem sempre acompanhada de momentos de fuga. A memória ao contrário do que alguém possa querer explicar, não são pedaços do passado revistos e projectados pelas traseiras dos nossos olhos para dentro da cabeça, tal qual uma caixa de luz emite as sombras em movimento. 

A memória é uma urgência. A memória são cheiros reais dos corpos estropiados exalando odores putrefactos. É molhada pelas poças de lama que espirram quando corres e corres sem noção de teres perdido as forças para que consigas correr ainda mais depressa do que a velocidade dos estilhaços que nos vão acertando.

Olha, aquele foi dos últimos a ter fugido. Correram uns quantos e ele estava para trás. Correu porque foi atrás dos outros em vez de ter tentado salvar a sua vida. 

Foi por impulso e acção em vez de ir na urgência da vida. É totalmente diferente fugir para viver ou fugir atrás de alguém para se salvar.

Viver é correr mais e mesmo assim tão pouco; fugir de lado nenhum para qualquer sítio onde não possa ser alcançado por uma bomba ou seus estilhaços; saltar por cima da destruição e enganar as miras apontadas das munições dos ocupantes. 

Ainda há tempos atrás alguém vinha a meu lado, corríamos em ziguezague tricotando caminhos. Ele chorava de gritos. Gritava a chorar. Pobre coitado. Não o consegui mandar calar porque me iria distrair e perder o sentido do som das balas.

Elas vinham todas de cima, lá do cimo dos terraços dos arranha-céus. Apontadas primeiro à cabeça e só depois se necessário às pernas para levantar a mira novamente à cabeça para terminar o serviço.

Ele corria três passos atrás dos meus, pisava as minhas marcas. Corria atrás de mim. A bala que era para me ter acertado acima dos olhos, raspou o escalpe e foi-lhe apanhar o peito. Calculo que lhe trespassou o externo e nem os pulmões amorteceram com a sua massa mole a força da bala.

Deixei de ouvir o choro.

Não me lembrei de olhar para trás. 

Segui. Por raios. Insensibilidade. Não parei para prestar auxílio. Nem sabia que isso existia.

Como posso ter memória tão presente de algo que não vi e que imagino ser real. Parece que o vi cair no chão mudo, calado e sem que lhe tivesse doído a queda. Quando aterrou já ia morto.

Nunca houve paz, sentimento intraduzível por quem nunca a viveu e que sem memória dela, não a pode recordar.

O que é a paz.

A paz poderia ser simplesmente a falta de munições que os atacantes têm à sua mercê e parece ininterruptamente não lhes faltar. Devem ter uma grande fábrica com que construíram as minhas memórias. 

Consegui fugir de ser um alvo em movimento. A maior parte do tempo simulava que estava morto. A restante parte passei-a a correr das balas à procura de refúgio. 

Agora estou perdido no meio de uma floresta. 

Não sei viver. Falta-me fugir das balas. Era a única coisas que os sobreviventes eram bons a fazer até o deixarem fatalmente de ser.

E agora.

Não sei o que é um dilema. Dilema é optar e decidir. Nunca tive hipótese de optar não correr das balas assassinas. Nunca pensei em decidir se o caminho era o correcto. Era sempre aquele trajecto não escolhido o único possível, caso contrário agora era húmus de mim impregnado nas ruínas da terra, local onde o atacante pudesse ter tido melhor pontaria que a minha escolha tomada. 

Gostava de voltar a espreitar aquele local de memórias. 

Não faz sentido querer lá voltar.

Se é isto a que chamam memória, então estaremos todos tramados. Nunca aprenderemos nada com a memória. 

A memória do sofrimento pouco nos ensinará a sobreviver. Tornar-nos-á reféns de escolhas e subjectividades demasiado humanas. Faz-nos perder tempo e a morte é agiota do tempo.

O silêncio deste verde interminável que me esquece as sombras dos arranha-céus. Camuflados pela escuridão da massa de betão que se oponham à luz do sol, percorri a vida até então encostado o mais possível às paredes. Ninguém ensinou que as balas tracejantes necessitam de um angulo mais aberto para que possam ser bem sucedidas. Mal aventurados aqueles que fugiam dos estilhaços das montras e das línguas de vidros a explodir para o meio dos caminhos abertos. Quais técnicas avançadas de matança, armadilhas lançadas com sabor a morte.   

Menos um no contador mas mesmo assim não acelera o terminar da guerra. Se uma morte valesse de alguma coisa, esse seria o momento do agressor afrouxar os desejos de saborear os odores das carnes caídas ainda frescas no chão.

Esta sensação perturbante do silêncio.

Sentado no rebordo de uma árvore, seguramente seriam necessários uns vinte ou trinta fugidos para contornar aquela circunferência de madeira que resistiu ao passar dos tempos. 

Um corpo presente.

Um corpo gasto, esfomeado, sujo, cicatrizado.

A solidão, o sofrimento, as nervuras das memórias.

Agonizando.

Para se experimentar a solidão é necessário em algum momento ter-se estado acompanhado e dependente de alguém que nos tome as rédeas da condução das decisões. Aquela era outra solidão. Mergulhado numa imensidão nocturna da anarquia da floresta que sobrevive crescendo numa luta vertical em direcção à primeira fímbria da luz solar, paira uma densa névoa respirada pelas plantas exalando odores de vegetação apodrecida e consumida pelas terras lodosas; tornava o espectro fantasmagórico.

O ar tornava-se cada vez mais ramificado e inebriante. 

Sensação de nuvens carregadas de chuva que podiam jorrar bátegas de água mas que inverteram-se. Pairam pelo chão e com as mãos consegue-se riscar traços abertos que permitem ver o chão.

E se subisse esta árvore, urgência do pensamento plasmado. É possível ver-se o pensamento? Subir a árvore para quê? Onde termina a floresta, o que haverá além? Estarei a caminhar a direito para longe do meu destino.

Sinto o desconforto do medo. Os barulhos, estava tão habituado ao terror dos gritos que interrompiam ao silêncio. Agora não oiço nada. Sou apanhado distraído com os sons da floresta. Rugidos do som do vento que circundam as árvores e serpenteiam por elas acima levando pedaços desta névoa térrea em espiral até me desaparecerem do meu alcance.

Lá em cima deve estar sol. Parece que vejo um certo piscar de luz.

Não tenho artes, forças ou forma de subir estes gigantes. 

Olho para as nervuras dos troncos e eles dançam. Oscilam numa espécie de bailado.

Corro sem saber onde colocar os pés. Tropeço. Levanto-me e agarro no primeiro pau que consigo apanhar. Que seres são estes? Fujo da guerra para um insano mundo de demónios. 

Sinto o restolhar do chão a aproximar-se. Passos estranhos que me confundem a orientação. Escondo-me encostado a uma árvore e semicerro os olhos para perceber o som que tento perceber mais próximo, a névoa que se possa demarcar e abrir passagem para o que esteja a aparecer. Levanto todos os meus sentidos e principalmente apuro o ouvido. Não oiço nada. Estará parado a espera que me mexa? Tenho que me manter imóvel. Sou demasiado pesado para esta espera. As pernas tendem a fraquejar.

Pesado não é o corpo assente naquele lodaçal, o que pesa é o medo.

Desço a mão esquerda e encosto-a ao corpo. Relaxo.

No bolso sinto a presença de um dos dois amuletos que carrego há tanto tempo, imenso que não consigo lembrar. Talvez numa das últimas mudas de roupa que consegui trocar com um dos corpos pouco ensanguentados com que me deparei num momento de pausa dos ataques. Não me lembro ao certo.

Aperto. Sinto a ponta rasa da munição que apanhei um dia do chão. Aperto com força à medida que atento ao movimentar da neblina que paira acima dos tornozelos. Volta aquele som. O que ali estiver estará próximo. 

Faço força com os olhos para ouvir melhor. Contradições dos sentidos. O ser humano não foi preparado para estar condicionado e privado das suas defesas elementares. O som de uma marcha que não avança. Torço a cabeça para dar amplitude ao melhor ouvido. Qualquer coisa estará ali. 

Começo a pensar ou duvidar se oiço sons ou se a minha cabeça simplesmente imagina a existência de qualquer coisa que ganha forma e musculatura de fantasia.

Fraquejo.

Se estivesse fora de mim e me olhasse atentamente teria a aparência de um esquálido ser.

Fraquejo de fraca figura me tornei. De resistente de inequívoco sucesso a farrapo de mim que fui.

Tento recordar o som dos ataques para me despertar aqueles sentidos apuradíssimos que conduziam a uma animalesca salvação do corpo. Sem alma, vazia em si, o medo não era uma condição. O medo ter-me-ia levado à subjectividade da morte. Pensar o medo distraía a função primordial da sobrevivência. 

Vejo-me agarrado a uma bala guardada no bolso das calças, transtornado e absorvido pelo temor do desconhecido. 

Quero sair daqui. Quero voltar a estar sob mira de céu aberto com todas as vulnerabilidades que daí esteja sujeito.

Fraquejo neste silêncio. Ainda não percebi se sou presa ou aprisionado.

Sopram ventos lá no alto, finalmente um som ambiente que me é familiar. Levanto a cabeça e destapo o capuz negro camuflado de sujo, tal qual toda a roupa despida daquele corpo abatido. Oiço o vento e o abanar da copa das árvores, poderia agora começar a imaginar uma suave brisa ondulando sobre a vegetação rasteira, soltando os verdes terra e os amarelos ou dourados cereais. Mas não quero ir por aí. Simplesmente quero fugir daqui.

Lá em cima o vento que abana as copas, deixam penetrar troncos abaixo uma fluída língua de ar forte, circundante e serpenteando até meia altura. Agora sim, aos poucos, este terreno escuro e fértil em húmus lamacento começa a descobrir-se. A dança dos galhos que se eriçaram numa vertiginosa salvação vertical em direcção daqueles valiosos pontos de sol, abrem-se e são perpassados pela prata luz de uma lua que não consigo observar. A espaços este chão de vida vegetal encerrada numa morte que serve para se regenerar é lambido por flashes de luz. Piscando o observo e retiro uma sucessão de imagens que colo num puzzle imaginário. 

Atravesso o espaço que não conheço por um carreiro de pedras envoltas em musgo que exala um odor, quase se permite morder no ar, percorro caminho que se apresenta virgem de passos perdidos desde um passado tão distante que esta selva desenfreada persistiu esconder.



 

 



quarta-feira, 9 de março de 2022

Então e o mundo corre?

"Então e o mundo corre? 

Não, está parado... 

E a tua vida, como estás? 

Morri. 

Morreste, mas valeu a pena? 

Era a única coisa que se importou comigo, já algum tempo que me aguardava e prometia amor eterno 🥀"

Votos renovados (27.02.22)

 "No dia em que me descobrirem morto

Quero um enterro negro e preto 

Quero silêncio 

Quero ouvir-me

Quero ouvir a terra e as pedras a baterem nas tábuas 

Quando as cordas baixarem o caixão será o último som retirado da luz do dia

Silêncio, os mortos não ouvem."

... que regressem (28.02.22)

 "Segue, seguindo aquele caminho

Traçado, subido e transpirado

Desce a vala de donde as chuvas correm em carreiro

Lá em baixo, ao fundo onde tudo desaparece atrás da correria dos homens, 

Existem mulheres mães e mulheres avós já viúvas que aguardam estes que aqui regressam

Mesmo que mortos estropiados, mas que regressem"

Uma carta na guerra

"Vou-me embora com estes homens que também se vão. Mal os conheço, mas sei porque é que eles estão comigo.

Está na hora de partir. 

Os motores estão mais que prontos.

O destino é a carnificina mais que certa. Vamos fazer figura de utopia da resistência. Ali estaremos a ouvir o zumbido da morte e o ribombar estridente da terraplanagem de uma história. Depois será a paz. Se me encontrares morto, que seja por terem-me entregue a ti a aos meus restos sobrantes e que as tuas mãos me recebam. Afortunado serei se não ficar na decomposição que alimenta os cães e as terras do campo de batalha.

Agora vou.

Não deixes cair nenhuma lágrima. Cada uma que cair será a pior das bombas que me poderão atingir. Quero ver esses olhos mentirosos de felicidade, de esperança e de amor. Mente-me por uma última vez.

Os tanques de guerra já deitam fumo e os camiões repletos de homens amontoados para serem descarregados na fornalha acenderam as luzes de nevoeiro.

Sim levo tudo, não me esqueci de nada. Também levo um cantil de água mais que suja mas sempre servirá para limpar a cara no momento imediatamente antes de ser abatido ou desmembrado por uma filha da puta de uma bomba cientificamente preparada para não falhar-me como alvo. 

Dá-me por favor o teu lenço sujo. Quero levar alguma coisa física que seja tua para compensar a imagem que guardo do teu sorriso e que pelo caminho a possa perder... 

Sim, eu sei que prometi que te defendia, não deixei de ser uma mentira, mas se não for morrer para longe também não poderei ficar contigo. Teria de morrer aqui. 

Guarda por favor a fotografia que me deste, serias a minha santa padroeira do caminho das lamas e da poeira que teima não descer à terra. Quando for abatido por uma bala que perfurará a porcaria deste capacete de brincar à guerra dos homens maus, não quero que me vasculhem os bolsos e encontrem a representação da beleza e da minha felicidade. Não lhes quero dar esse gozo pérfido. 

Bem está na hora de ir, até já e nunca mais nos voltaremos a ver. Tem cuidado contigo, toma conta da nossa casa que daqui a pouco tempo será dizimada. Pelo menos vê se a porta fica bem fechada antes do sótão do último andar cair no chão com tudo o que o segurava. Sim, também cairá aquele último andar onde não raras vezes vimos o pôr do sol e que sempre dizias, pronto apagou-se. 

Gritou. 

Eles estão a mais ou menos a 250 metros de nós. Escondido debaixo do camião, tinha na mão esquerda esta carta amarrotada, suja e lida pela última vez. No momento da despedida, na semana passada ou há menos dias porque o tempo se confunde e impede de ser contado, não teve coragem de entregar um papel de despedida escrito na pressa de um bico de lápis mal aparado. 

Guardou a carta, a fotografia e o lenço. O lenço fez de torniquete na zona da rótula estilhaçada. Amparava as dores a cada vez que mexia ou tentava segurar-se. 

Explodiram o camião e as outras tralhas com tudo o que mal mexia. 

Muitos deles, eram cinco já não mexiam e não sentiram o calor da deflagração, outros dois dois mal tempo tiveram para sentir mas viraram a cara. 

Está na hora de partir..."

Dagoberto de Andrade (05.03.22)

Do arrependimento (07.03.22)

 "Um dia estava sozinho como sempre estou, do outro lado e à frente do espelho estava o meu único amigo. 

Discutimos e dissemos coisas desagradáveis, muito agressivas. 

Foi um terrível ajuste de contas.

No fim virei costas e apaguei a luz.

Passados uns dias senti o amargo do arrependimento. 

Voltei ao lugar onde está o espelho. 

Acendi a luz e esperei. 

Do outro lado não estava ninguém. 

O meu reflexo não estava arrependido."

... em queda livre (09.03.22)

"... em queda livre

Atirado para um poço

Batendo nas paredes de pedras toscamente assentadas para suster as terras, 

Em queda livre gritada, 

Num sopro agudo que afoga os pulmões, 

A vertigem que esfola os pés que resvalam e torcem os joelhos que te dão balanço para as pancadas nas têmporas. 

E choras, 

E choras, porque não consegues gritar, 

Os pés que não alcançam o fundo. 

A vertigem da sucção, 

Ainda não sabes mas só agora começaste a queda livre. 

De cada vez que tentas olhar para baixo, 

De cada vez que o teu estômago faz força para conseguires abrir os braços levas pancadas de ricochete, 

Meu Deus, pai, ajuda-me que isto não pára, 

Minha mãe, onde estás agora para me amparar, 

Alguém que me segure a gola. 

E está escuro. 

Da outra vez tentaram afogar-te. 

De olhos vendados e dobrado em cima da cadeira, percebias a centelha luz da lâmpada lá em cima tremendo através dos filamentos em brasa. 

Mal sentado em cima dos punhos atados atrás das costas, conheceste como se afoga um homem com meio balde de água suja entornada sobre a boca que não te deixaram fechar. 

Em queda livre que o peso do teu morto corpo acelera nas pancadas que absorves em cada saliência que acertas... 

A paz finalmente. 

Aquela luz ali em baixo. 

Esse sorriso esganado. 

O estômago que deixa de ser obrigado a comprimir a tensão dos músculos restantes. 

Desmaiado no momento certo que alivia todas as dores passadas e suspende a queda, 

Não sabes mas foste levemente recebido no fim do buraco sem fim. 

Agora aguardo que acordes. 

Lembras-te de mim. 

Acorda meu amigo, não me deixes aqui. 

Esperem,

Está aqui esta flor, 

Um malmequer igual aos com que brincámos a arrancar as pétalas brancas naqueles tempos dos joelhos e cotovelos esfolados.

Faz tu agora, pode ser que tenhas sorte e calhe sim.

Podem tapar.

As primeiras pazadas de terra que sujam e tapam a madeira envernizada são tímidas. 

Denota-se o cuidado com que o coveiro tenta não atirar nem muita nem muito de cada vez. 

Estás aí. 

Acorda agora senão termina. 

O coveiro sem olhar em redor dobra-se sobre o buraco tapado. 

Bate sete vezes, 

Sete vezes sete basta,

Setenta vez sete era a conta que Jesus pedia bem mais por um perdão de um irmão. 

Perdoa-me, e agora não sei mais. 

Podias ter avisado como era aqui em cima sozinho."

Dagoberto de Andrade, 09.03.22