quarta-feira, 9 de março de 2022

... em queda livre (09.03.22)

"... em queda livre

Atirado para um poço

Batendo nas paredes de pedras toscamente assentadas para suster as terras, 

Em queda livre gritada, 

Num sopro agudo que afoga os pulmões, 

A vertigem que esfola os pés que resvalam e torcem os joelhos que te dão balanço para as pancadas nas têmporas. 

E choras, 

E choras, porque não consegues gritar, 

Os pés que não alcançam o fundo. 

A vertigem da sucção, 

Ainda não sabes mas só agora começaste a queda livre. 

De cada vez que tentas olhar para baixo, 

De cada vez que o teu estômago faz força para conseguires abrir os braços levas pancadas de ricochete, 

Meu Deus, pai, ajuda-me que isto não pára, 

Minha mãe, onde estás agora para me amparar, 

Alguém que me segure a gola. 

E está escuro. 

Da outra vez tentaram afogar-te. 

De olhos vendados e dobrado em cima da cadeira, percebias a centelha luz da lâmpada lá em cima tremendo através dos filamentos em brasa. 

Mal sentado em cima dos punhos atados atrás das costas, conheceste como se afoga um homem com meio balde de água suja entornada sobre a boca que não te deixaram fechar. 

Em queda livre que o peso do teu morto corpo acelera nas pancadas que absorves em cada saliência que acertas... 

A paz finalmente. 

Aquela luz ali em baixo. 

Esse sorriso esganado. 

O estômago que deixa de ser obrigado a comprimir a tensão dos músculos restantes. 

Desmaiado no momento certo que alivia todas as dores passadas e suspende a queda, 

Não sabes mas foste levemente recebido no fim do buraco sem fim. 

Agora aguardo que acordes. 

Lembras-te de mim. 

Acorda meu amigo, não me deixes aqui. 

Esperem,

Está aqui esta flor, 

Um malmequer igual aos com que brincámos a arrancar as pétalas brancas naqueles tempos dos joelhos e cotovelos esfolados.

Faz tu agora, pode ser que tenhas sorte e calhe sim.

Podem tapar.

As primeiras pazadas de terra que sujam e tapam a madeira envernizada são tímidas. 

Denota-se o cuidado com que o coveiro tenta não atirar nem muita nem muito de cada vez. 

Estás aí. 

Acorda agora senão termina. 

O coveiro sem olhar em redor dobra-se sobre o buraco tapado. 

Bate sete vezes, 

Sete vezes sete basta,

Setenta vez sete era a conta que Jesus pedia bem mais por um perdão de um irmão. 

Perdoa-me, e agora não sei mais. 

Podias ter avisado como era aqui em cima sozinho."

Dagoberto de Andrade, 09.03.22


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