sexta-feira, 17 de abril de 2020

3/1/2020


Não me lembro de ter vivido em paz.
Os momentos passados em silêncio eram de uma terrível sensação de ansiedade e medo. O silêncio é prenúncio de terror. A espera. A angústia da espera.
No imediato momento em que começa a soprar o zumbido é sinal que nas imediações vão cair engenhos da guerra.
Nada mais resta intacto que mereça ser destruído. Mas a guerra parece que é assim mesmo.
Desde que sinto a "memória" viva e permanente na cabeça, ela vem sempre acompanhada de momentos de fuga. A memória ao contrário do que alguém possa querer explicar, não são pedaços do passado revistos e projectados pelas traseiras dos nossos olhos para dentro da cabeça, tal qual uma caixa de luz emite as sombras em movimento.
A memória é uma urgência. A memória são cheiros reais dos corpos estropiados exalando odores putretactos. É molhada pelas poças de lama que espirram quando corres e corres sem noção de teres perdido as forças para que consigas correr ainda mais depressa do que a velocidade dos estilhaços que nos vão acertando.
Olha, aquele era dos últimos a ter fugido. Corria porque foi atrás dos outros em vez de ter tentado salvar a sua vida.
Foi por impulso em vez de ir na urgência da vida. É totalmente diferente, fugir para viver ou fugir atrás de alguém para se salvar.
Viver é correr mais e mesmo assim tão pouco; fugir de lado nenhum para qualquer sítio onde não possa ser alcançado por uma bomba ou seus estilhaços; saltar por cima da destruição e enganar as miras apontadas das munições dos ocupantes.
Ainda há tempos atrás alguém vinha a meu lado, corríamos em ziguezague. Ele chorava de gritos. Gritava a chorar. Pobre coitado. Não o consegui mandar calar porque me iria distrair e perder o sentido do som das balas.
Elas vinham todas de cima, lá do  cimo dos terraços dos arranha-céus. Apontadas primeiro à cabeça e só depois se necessário às pernas para levantar a mira novamente à cabeça para terminar o serviço.
Ele corria três passos atrás dos meus, pisava as minhas marcas. Corria atrás de mim. A bala que era para me ter acertado acima dos olhos, raspou o escalpe e foi-lhe apanhar o peito. Calculo que lhe trespassou o externo e nem os pulmões amorteceram com a sua massa mole a força da bala.
Deixei de ouvir o choro.
Não olhei para trás.
Segui. Por raios quem insensibilidade. Não parei para prestar auxílio. Nem sabia que isso existia.
Como posso ter memória tão presente de algo que não vi e que imagino ser real. Parece que o vi cair no chão mudo, calado e sem que lhe tivesse doído a queda.
Nunca houve paz, sentimento intraduzível por quem nunca a viveu e que sem memória dela, não a pode recordar.
O que é a paz.
Bem, a paz poderia ser simplesmente a falta de munições que os atacantes têm à sua mercê e parece ininterruptamente não lhes faltar. Devem ter uma grande fábrica com que construiram as minhas memórias.
Consegui fugir de ser um alvo em movimento. A maior parte do tempo simulava que estava morto. A restente parte passei-a a correr das balas à procura de refúgio.
Agora estou perdido no meio de uma floresta.
Não sei viver. Falta-me fugir das balas. Era a única coisas que os sobreviventes eram bons a fazer.
E agora.
Não sei o que é um dilema. Dilema é optar e decidir. Nunca tive hipótese de optar ou não por correr das balas assassinas. Nunca pensei em decidir se o caminho era o correcto. Era sempre o correcto caso contrário agora era húmus de mim impregnado nas ruínas da terra, local onde o atacante pudesse ter tido melhor pontaria.
Gostava de espreitar aquele local de memórias. Não faz sentido querer lá voltar.
Se é isto a que chamam memória, então estaremos todos tramados. Nunca aprenderemos nada com a memória. A memória do sofrimento pouco nos ensinará a sobreviver. 

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