《A nobreza das palavras afronta e confronta directamente
com a vacuidade do acto.
O juiz ao entrar na sala de audiências do tribunal de
primeira instância ordenou com um tom de enorme severidade "Levante-se o
réu."
O homem sentado à sua frente, precariamente instalado num
corrido banco de madeira, não reagiu à ordem do juiz. Simplesmente não se mexeu
continuando a olhar para os atacadores dos seus miseráveis sapatos.
"Levante-se o réu, rápido que não tenho tempo a
perder"
E nada.
"Oiça lá você está a gozar com o tribunal?"
E nada.
Sua eminência do alto do generosamente estofado cadeirão
lança uma estridente martelada na mesa; martelo este usado para encerrar o
veredicto das audiências e demais actos de julgar o culpado ou o inocente, que
ecoou pela sala em peso proporcional do susto e do medo afligido nos demais
presentes.
Solitário homem sem advogado por imposição do próprio que
prescindiu de outra cabeça que não a sua para legitimar a argumentária a
contestar, levantou os olhos cavados dentro das órbitas e riu-se. Gargalhou ao
mesmo tempo que descruzava e voltava a cruzar as pernas agora em sentido
contrário.
Murmúrio. Murmúrios na sala.
"Ordem na sala! Ordem senão mando evacuar a sala"
e olhando em direcção do homem "Será multado por desobediência ao tribunal
e à figura do juiz, aqui seu máximo e primeiro representante"
Levando a sua mão direita à cabeça, afagando a alta testa
como que limpando o suor inexistente; aquele esquálido rosto aparentava uma
infindável paciência de quem teria já passado o tempo em que o tempo por si só
fosse um pretexto para uma urgência deixada de existir há muito tempo atrás.
Solenemente "O meritíssimo juiz entrou na sala e sem dar a devida saudação
aos presentes berrou para que o réu se levantasse. Eu como não me considero réu
e muito menos culpado do que quer que seja fiz-lhe o favor de respeitar a sua
ordem. Em consciência não me levanto a não ser que o meritíssimo juiz
tenha a dignidade de descer desse cadeirão e aproximar-se para me
cumprimentar. Aí sim por humilde educação granjeada ao compasso do tempo
passado farei o obséquio de o saudar calorosamente".
Irritado e não menos surpreso o juiz volta a bater com o
martelo no verniz lustroso do tampo da mesa "Está encerrada a audiência
por desobediência do réu para com o tribunal. Seja detido o réu e levado para
os calabouços "
Voltando a descruzar as pernas, agora para erguer o
cadavérico corpo "Como é que o meretíssimo juiz declara encerrada a
audiência de algo que não chegou a iniciar?"
De imediato o juiz reclama "Senhores agentes da
autoridade prendam-me este homem que não suporto mais desaforos."
De pé o homem responde "Eu sou Adérito e a plateia
quando entrei já estava preenchida. Aqui me deixei ficar até que alguém me
pedisse para desocupar o lugar. Sabe meretíssimo juiz é que eu só cá vim ver o espectáculo
que é julgar os outros quando se tem a barriga cheia. O réu ainda não chegou e
o baile está armado tal qual se dizia na minha terra."
Lívido de cor e forças "O senhor não é o réu?"
remata o juiz.
Com sorriso mordaz os olhos amarelecidos que pareciam ganhar
alma rejuvenescida neste homem, agora de pé "Serei se o meretíssimo juiz
conseguir ser competente o suficiente para provar que eu sou culpado do que
quer que seja. Até lá só sou Adérito. Meretíssimo, ao seu dispor"》
Rui Santos (27.11.17)
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