terça-feira, 12 de junho de 2018

O Réu e o Juiz


A nobreza das palavras afronta e confronta directamente com a vacuidade do acto. 
O juiz ao entrar na sala de audiências do tribunal de primeira instância ordenou com um tom de enorme severidade "Levante-se o réu."
O homem sentado à sua frente, precariamente instalado num corrido banco de madeira, não reagiu à ordem do juiz. Simplesmente não se mexeu continuando a olhar para os atacadores dos seus miseráveis sapatos. 
"Levante-se o réu, rápido que não tenho tempo a perder"
E nada.
"Oiça lá você está a gozar com o tribunal?"
E nada.
Sua eminência do alto do generosamente estofado cadeirão lança uma estridente martelada na mesa; martelo este usado para encerrar o veredicto das audiências e demais actos de julgar o culpado ou o inocente, que ecoou pela sala em peso proporcional do susto e do medo afligido nos demais presentes. 
Solitário homem sem advogado por imposição do próprio que prescindiu de outra cabeça que não a sua para legitimar a argumentária a contestar, levantou os olhos cavados dentro das órbitas e riu-se. Gargalhou ao mesmo tempo que descruzava e voltava a cruzar as pernas agora em sentido contrário. 
Murmúrio. Murmúrios na sala.
"Ordem na sala! Ordem senão mando evacuar a sala" e olhando em direcção do homem "Será multado por desobediência ao tribunal e à figura do juiz, aqui seu máximo e primeiro representante"
Levando a sua mão direita à cabeça, afagando a alta testa como que limpando o suor inexistente; aquele esquálido rosto aparentava uma infindável paciência de quem teria já passado o tempo em que o tempo por si só fosse um pretexto para uma urgência deixada de existir há muito tempo atrás. Solenemente "O meritíssimo juiz entrou na sala e sem dar a devida saudação aos presentes berrou para que o réu se levantasse. Eu como não me considero réu e muito menos culpado do que quer que seja fiz-lhe o favor de respeitar a sua ordem.  Em consciência não me levanto a não ser que o meritíssimo juiz tenha a dignidade de descer desse cadeirão e aproximar-se para me cumprimentar.  Aí sim por humilde educação granjeada ao compasso do tempo passado farei o obséquio de o saudar calorosamente".
Irritado e não menos surpreso o juiz volta a bater com o martelo no verniz lustroso do tampo da mesa "Está encerrada a audiência por desobediência do réu para com o tribunal. Seja detido o réu e levado para os calabouços "
Voltando a descruzar as pernas, agora para erguer o cadavérico corpo "Como é que o meretíssimo juiz declara encerrada a audiência de algo que não chegou a iniciar?"
De imediato o juiz reclama "Senhores agentes da autoridade prendam-me este homem que não suporto mais desaforos."
De pé o homem responde "Eu sou Adérito e a plateia quando entrei já estava preenchida. Aqui me deixei ficar até que alguém me pedisse para desocupar o lugar. Sabe meretíssimo juiz é que eu só cá vim ver o espectáculo que é julgar os outros quando se tem a barriga cheia. O réu ainda não chegou e o baile está armado tal qual se dizia na minha terra."
Lívido de cor e forças "O senhor não é o réu?" remata o juiz.
Com sorriso mordaz os olhos amarelecidos que pareciam ganhar alma rejuvenescida neste homem, agora de pé "Serei se o meretíssimo juiz conseguir ser competente o suficiente para provar que eu sou culpado do que quer que seja. Até lá só sou Adérito. Meretíssimo, ao seu dispor"
Rui Santos  (27.11.17)

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